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Por Walter Arnaud Mascarenhas Junior*

RESUMO: O artigo retrata alguns episódios marcantes da trajetória polêmica de Jair Messias Bolsonaro ao longo de sua carreira militar no exército brasileiro. Trata-se de uma compilação de dados extraídos de uma única obra: “O cadete e o capitão”, de Luiz Maklouf Carvalho, a partir da qual foi possível conhecer como as reminiscências de um pensamento autoritário foi capaz de produzir uma decisão inusitada no Superior Tribunal Militar até hoje de difícil compreensão.

Muito se comenta a respeito desse julgamento, mas a bem da verdade, mesmo entre os militares essa história parece mal contada.

A começar por que Bolsonaro nunca foi um modelo de conduta no Exército, salvo como atleta que realmente se destacou no pentatlo militar, modalidade esportiva que escolhera e que, de fato, lhe rendera boa conceituação, inclusive em assentamentos.

De resto, sua carreira foi mais marcada por mal-entendidos ou transgressões de comportamento do que por algo que pudesse caracterizá-lo como merecedor de muito respeito ou admiração.

Sua primeira aparição no âmbito militar, responsável por fixa-lo de vez no subconsciente coletivo se deu por conta de um artigo que ele publicou na revista Veja na coluna “Ponto de Vista” em setembro de 1986, cujo título foi “O salário está baixo”.

Nesse artigo, o então capitão reclamava por melhores condições salariais para a classe militar, pois o país passava por um momento de indefinição já que José Sarney, recém empossado presidente – após morte de Tancredo Neves – vivia um ano de expectativa em torno do primeiro mandato presidencial da era democrática, após 21 anos de ditadura militar.

O plano cruzado tinha acabado de ser implantado e com ele o congelamento de preços fez o povo brasileiro sentir na pele o peso da inflação que chegou a alcançar um índice superior a 250% ao ano.

O capitão, corajoso como sempre, não titubeou ao afirmar que o desligamento de cadetes da Aman (Academia Militar das Agulhas Negras) noticiado na época, não ocorrera pelas denúncias de “consumo de drogas”, “homossexualismo” ou “falta de vocação para a carreira militar”, mas sim pelas precárias condições de subsistência, pois o dispêndio com muito esforço físico e carga horaria elevada nos serviços militares não podiam ficar circunscritos somente ao patriotismo, pois isso não enchia barriga de ninguém.

A tiragem da revista Veja encontrou, como de costume, excelente acolhida no público em geral, salvo pelo alto comando do Exército que entendeu aquilo como uma transgressão militar de Bolsonaro por: 

ter elaborado e feito publicar em revista semanal, de tiragem nacional, sem conhecimento e autorização de seus superiores, artigo em que tece comentário sobre a política de remuneração do pessoal civil e militar da União: ter abordado aspectos da política econômico-financeira do governo fora de sua esfera de atribuições e sem possuir  um nível  de conhecimento global que lhe facultasse  a correta análise; ter sido indiscreto na abordagem do assuntos de caráter oficial comprometendo a disciplina; ter censurado a política governamental; ter ferido a ética gerando clima de inquietação no âmbito da OM, da GU e da força; e por ter contribuído para prejudicar o excelente conceito da tropa Paraquedista no âmbito do Exército e da nação”. 

Em consequência, Bolsonaro foi incurso em seis artigos do Regulamento Disciplinar do Exército (RDE) que previa prisão de 15 dias, ele então ficou durante todo o período no Quartel do 8º Grupo de Artilharia de Campanha Paraquedista (GAC) em Deodoro, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, mas a partir daí tornou-se popular entre colegas de farda e familiares de militares que passaram a lhe endereçar cartas narrando suas mazelas e creditando a ele a esperança por dias melhores.

Um ano após, porém, Bolsonaro voltava a chamar atenção, desta feita por conta do episódio denominado “Operação Beco sem Saída” que outra vez mereceu destaque nas manchetes de jornais e da mesma revista Veja.

Agora a notícia era textualmente “bombástica” porquanto a edição de número 999, datada de 28 de outubro de 1987 foi intitulada assim: “Pôr bomba nos quartéis, um plano na EsAO”.

A notícia girava em torno de um suposto plano de atentado à bomba a unidades da Vila Militar, na Aman e no interior do Estado do Rio de Janeiro, em quartéis do Exército, o que seria feito em protesto contra o governo federal que indicava querer dar um aumento irrisório para os militares, o que se confirmado, mediante reajuste inferior a 60% do vindicado, desencadearia a explosão de tais bombas. 

Sendo certo que essas bombas seriam detonadas em locais estratégicos que não oferecessem perigo a pessoas, pois a ideia era só desestabilizar o ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves, tido como incompetente para reivindicar melhorias para a categoria militar. 

Ocorre que após compartilhado o plano com uma jornalista da Revista Veja já conhecida de Bolsonaro, Cassia Maria Rodrigues com quem vinha mantendo contado desde a matéria “O salário está baixo”, o acordo de cavalheiros de “não publicar” ou “manter sigilo” foi quebrado frente a possibilidade de algo dar errado e provocar uma tragédia, o que acabava por tornar o segredo algo perigoso e espúrio.

Com a publicação da matéria, rapidamente o Alto Comando do Exército promoveu a convocação de Bolsonaro para se explicar, o que fez negando inteiramente o fato e devolvendo a revista o ônus de demonstrar a veracidade do que publicara.

Diante disso, em pronunciamento oficial – para surpresa geral – o próprio ministro Leônidas Pires Gonçalves que a pouco tempo havia sido chamado de “incompetente” e “racista” por Bolsonaro pôs panos quentes no assunto, dizendo que se seus oficiais (Bolsonaro e Fábio Passos) haviam peremptoriamente negado a denúncia da revista como constava de seus termos de declaração, não seria ele, como autoridade máxima da instituição “Exército” que iria lhes negar credibilidade.

Mas, a revista Veja reagiu de forma contundente, ironizando a postura do ministro e apresentando um fac-símile com croquis atribuídos a Bolsonaro, onde continha a indicação de como as bombas seriam detonadas ao longo de um trecho da tubulação da adutora do Guandu, abastecedora de água da cidade do RJ, cujo desenho trouxe a sensação da necessidade de se fazer perícia para certificar a autoria dos manuscritos.

Daí em diante a situação tomou um rumo sem volta, pois o Comando Militar do Exército sabia que Bolsonaro continuaria dando trabalho já que ele passou a ser o paradigma de “destemor” para Suboficiais, Sargentos e Praças que depositavam nele a pessoa certa para reivindicar por melhorias para toda comunidade militar.

Uma Sindicância na EsAO constatou a necessidade de submetê-lo a um Conselho de Justificação, procedimento que visa apurar se o militar de carreira possui capacidade para permanecer no corpo da Ativa ou não, ocasião em que lhe é facultada a oportunidade de se justificar perante seus superiores hierárquicos. 

Sendo assim, Bolsonaro foi incurso no art. 2º, item I, alíneas ‘b’ e ‘c’ da Lei 5.836/1971 por ter incorrido em “conduta irregular” e ter praticado “ato que afeta a honra pessoal, o pundonor militar ou o decoro da classe”. 

Na sequência, o Conselho de Justificação foi formado pelo coronel de cavalaria Marcus Bechara Couto (presidente do Conselho), o tenente-coronel de infantaria Nilton Correa Lampert (interrogante e relator) e outro tenente-coronel de infantaria, Carlos José do Canto Barros (escrivão).

O processo foi deflagrado tendo por finalidade maior apurar a conduta de Bolsonaro no ano anterior (1986) quando publicou artigo na revista Veja, sem pedir autorização militar e a suposta declaração dada a repórter da revista Veja noticiando a existência de um plano que visava explodir bombas-relógio em unidades militares para desestabilizar o Comando da força. Ambas condutas “comprometedoras da disciplina e da ética militar”. 

O Conselho tomou os depoimentos pertinentes e requereu a direção da revista Veja a juntada dos croquis originais atribuídos a Bolsonaro, o que foi feito, a fim de ser submetido a perícia grafotécnica.

Durante a instrução processual, a repórter Cassia relatou ter sido ameaçada por Bolsonaro que através de um vidro que os separavam de um recinto para outro, teria ele simulado com as mãos, a forma de um revólver apontando para ela, o que foi interpretado como ameaça de morte.

A denúncia logo chegou ao conhecimento da imprensa que não perdeu tempo em publicar: “Ato de força – Capitão ameaça repórter que o denunciou”, este foi o título da matéria da revista Veja, 6ª edição da época.

Bolsonaro negou veementemente o fato e inclusive requereu uma perícia para demonstrar que através do tal vidro não era possível ela visualizar a suposta encenação e após algumas ponderações, de lado a lado, o Conselho entendeu não configurada ameaça alguma e deu prosseguimento aos trabalhos.

Também foi lembrada a “ficha de informações” de Bolsonaro, tendo merecido destaque um fato acontecido ainda em 1983, quando o coronel Carlos Alberto Pellegrino assim o tinha avaliado: “deu mostras de imaturidade ao ser atraído por empreendimento de garimpo de ouro. Necessita ser colocado em funções que exijam esforço e dedicação, a fim de reorientar sua carreira. Deu demonstrações de excessiva ambição em realizar-se financeira e economicamente”.

O mesmo coronel Pellegrino, após arguido pelo coronel Bechara Couto acerca da apreciação negativa que fizera sobre o Justificante e se teria algo mais a acrescentar, disse que o comportamento do então tenente, no segundo semestre de 1983 era: “reflexo de sua imaturidade e a exteriorização de ambições pessoais, baseadas em irrealidades, aspirações distanciadas do alcance daqueles que pretendem progredir na carreira pelo trabalho e dedicação”.

Disse ainda que o Justificante apresentava bom desempenho em funções administrativas e na preparação de exercícios, mas: “Nas rotinas de trabalho cotidiano, no exercício permanente das funções de instrutor, formador de soldados, e de comandantes, faltavam-lhe a iniciativa e a criatividade”.

E, por fim, encerrou sua inquirição dizendo que Bolsonaro:

tinha permanentemente a intenção de liderar os oficiais subalternos, no que foi sempre repelido, tanto em razão do tratamento agressivo dispensado a seus camaradas, como pela falta de lógica, racionalidade e equilíbrio na apresentação de seus argumentos”.

A defesa técnica do Justificante, nessa época representada pelo Dr. Onir de Carvalho Peres do Escritório O. C. Peres & Advogados contestou todos as alegações levantadas, tendo lembrado que o Justificante já havia sido punido com prisão de 15 dias em relação a publicação do artigo na revista Veja e que nova sanção implicaria in bis in idem, pois a aplicação de duas punições por um fato único não é permitida em Direito.

No tocante a suposta atração do Justificante pelas riquezas do garimpo, pontuou que isso não significava necessariamente imaturidade ou ambição, mas desejo de avançar a progredir e que, ademais, como estava de férias, Bolsonaro podia dispor de seu tempo como bem quisesse, até porque, como não houve “prática de comércio”, não poderia ser aplicado o Estatuto dos Militares em desfavor dele.

Bolsonaro ainda ponderou que não processou a revista Veja porque foi instaurada uma sindicância militar, a qual depois de concluída, caberia ao próprio Exército se manifestar, não, ele.

Afinal, “A lei militar não obriga ao militar ofendido o recurso ao judiciário”, tendo sua Defesa enfatizado: “A vida funcional do Justificante diz de sua idoneidade, valor militar, seus méritos e correta formação de caráter”.

Já sobre a “Operação Beco sem Saída”, o Justificante negou veementemente tudo, notadamente a autoria dos croquis.

Após coleta da prova oral, a controvérsia maior acabou por repousar sobre os malfadados croquis, tendo a situação ficado assim delineada: Uma primeira perícia grafotécnica foi feita, porém, por não contar com todos os documentos originais, restou inconclusiva. Sendo assim, uma segunda teve de ser realizada e foi feita pela mesma Seção de Investigações Criminais do Exército.

Os peritos da segunda perícia entenderam que apesar de encontrarem semelhanças entre alguns caracteres gráficos dos croquis e dos manuscritos examinados, isso não implicava em “responsabilidade gráfica”. Ou seja, mantiveram o mesmo entendimento da primeira, “inconclusiva”.

Inconformado com a indefinição, o presidente do Conselho, coronel Bechara Couto, no dia 04 de janeiro de 1988, determinou a realização de outra perícia (a terceira) que seria feita pela Polícia Federal e após colhido novo padrão gráfico dos punhos de Bolsonaro, o material foi remetido aos peritos, um do Instituto Nacional de Criminalística e outro da própria Polícia Federal.

O laudo foi concluído em menos de dez dias e atestou o seguinte:

SIM, não restam dúvidas ao ser afirmado que os manuscritos no doc. I (os croquis, ou esboços), questionado, promanaram do punho gráfico do capitão Jair Messias Bolsonaro, fornecedor do material gráfico padrão já identificado no corpo do presente laudo. Tal afirmativa é oriunda das coincidências e características encontradas no confronto efetuado, entre os documentos examinados, que permitiram a determinação de autoria. ” 

Ocorre que em razão da segunda perícia realizada pelo Exército não ter contado com o mesmo padrão gráfico, recém colhido dos punhos de Bolsonaro que serviu a Polícia Federal, se entendeu necessário proceder a uma “complementação” daquela perícia feita pela polícia técnica do Exército.

Portanto, os mesmos peritos que atuaram na segunda perícia do Exército (Newton Prado Veras Filho e Horácio Nelson Mendonça) e que haviam concluído – a menos de um mês – pela impossibilidade de atribuir a autoria dos croquis e manuscritos a Bolsonaro, foram novamente instados a se manifestarem. Desta feita, o laudo foi taxativo:

ante a comparação gráfica realizada entre os padrões gráficos coletados e a peça motivo (croquis), são os peritos acordes em que os caracteres gráficos lançados nos croquis e nas peças padrão, promanaram de um mesmo punho gráfico”.

Conclusão: o segundo laudo elaborado pelo Exército, após complementação dos mesmos peritos, teve seu resultado alterado de: inconclusivo para afirmativo, no sentido atestar que os croquis e demais manuscritos realmente profanaram dos punhos de Bolsonaro.

Diante desse quadro, o Conselho de Justificação em sessão secreta datada de 25 de janeiro de 1988, por unanimidade considerou o capitão Jair Messias Bolsonaro, “não justificado”, culpado!

No mérito constou: “Este Conselho não tem dúvidas em afirmar que o Justificante era informante da repórter Cassia Maria pelo menos desde o mês de outubro de 1987”. Os laudos expedidos pelo 1º BPE e pela Polícia Federal:

“atestam não restar duvidas ao ser afirmado que os manuscritos contidos nessa folha original promanaram do punho gráfico do capitão Jair Messias Bolsonaro.” “O resultado do laudo pericial evidencia ter sido o Justificante o autor dos croquis publicados na edição de nº 1000 da revista Veja e, por isso, ter mentido ao longo de todo o processo, o que permite seja firmada a convicção, por este Conselho que a versão apresentada pela repórter Cassia Maria, pela coerência e testemunhos apresentados, seja a mais aproximada da realidade, o que confirma a ocorrência da reunião, no dia 21 de outubro, na residência do capitão Fábio e, por conseguinte, os fatos geradores da reportagem, conforme foram apresentados.”

A decisão acima foi encaminhada ao ministro do Exército que manifestou sua inteira concordância e na forma da alínea “a”, inciso “V”, do art. 13 da Lei 5.836/1972, isto é, por haver considerado que o capitão Bolsonaro procedeu incorretamente no desempenho do cargo, remeteu os autos ao Superior Tribunal Militar.

No STM, porém, aconteceu uma grande, surpreendente e inusitada reviravolta. 

Pois bem, quinze ministros compuseram o tribunal pleno e treze compareceram à sessão de julgamento, sendo cinco civis (togados) e oito militares, da reserva.

Os civis: Dr. Ruy de Lima Pessoa, Dr. Antônio Carlos de Seixas Telles, Dr. Paulo César Cataldo, Dr. Aldo Fagundes e Dr. José Luiz Clerot, todos oriundos da advocacia e os militares: tenente-brigadeiro Antônio Geraldo Peixoto, almirante de esquadra Roberto Andersen Cavalcanti, general Sergio de Ary Pires, almirante Rafael de Azevedo Branco, general Almir Benjamin Chaloub, tenente-brigadeiro George Bellham da Motta, general Haroldo Erichsen da Fonseca e almirante de esquadra Luiz Leal Ferreira.

De todo avolumado foi acrescentado ao processo, as denominadas “folhas de alterações” onde constava a exclusão de Bolsonaro da EsAO para responder ao Conselho de Justificação e seu histórico durante o segundo semestre de 1987, neste, constando conceito excelente para todas provas físicas e para um teste de tiro, assim como, a informação de que concluíra o curso da EsAO com conceito “bom” e nota final 7,68, terminando aquele ano letivo na 28ª posição de uma turma de 49 alunos.

Bolsonaro reclamou a corte do STM, o fato de ter sido impedido de receber seu diploma na cerimônia oficial de conclusão de curso e de participar da colação de grau, assim como manifestou indignação contra um Editorial do Exército que tinha por título “A verdade: Um símbolo da honra militar” onde fazia referência a ele a Fabio Passos afirmando que ambos: “faltaram com a verdade e macularam a dignidade militar” sendo que ao final, constava: “Se assim forem julgados pelo STM” ao que ele considerou tratar-se de um verdadeiro “pré-julgamento” expresso de forma dura e ofensiva contra si.

Contestou ponto a ponto de todo o libelo-acusatório, repetindo de um modo geral o que já havia dito quando do primeiro Conselho de Justificação. 

Todavia, o que verdadeiramente fez toda diferença, nesse julgamento, foi por incrível que pareça a sua “autodefesa, onde curiosamente promoveu uma releitura de toda prova pericial e, ao final, parece que acabou confundindo a corte.

A começar se apresentou ‘sem advogado’, em que pese durante toda a fase anterior tenha sido assistido até por mais de um escritório de advocacia, porém logo de início fez constar na folha 2 de seu arrazoado: “Eis-me, pois, diante do STM, para defender a minha honra injustamente vilipendiada. Apresento-me, nesta oportunidade, desacompanhado de advogado, que, além de oneroso para minhas condições financeiras, entendo desnecessário comprovar-me juridicamente honrado. Sou, de fato, honrado, por todos atos que pratiquei, como soldado e cidadão. Para enuncia-los, ninguém melhor do que eu próprio”.

E assim, na sequência, deu início a tese mais curiosa de que se podia imaginar. Ao longo das 26 páginas de sua “defesa escrita”, desenvolveu o seguinte raciocínio: Que teriam sido produzidas quatro perícias, em vez de três. 1. Uma feita pelo Exército (inconclusiva), 2. Uma segunda, novamente pelo Exército, também inconclusiva, 3. Uma terceira pela polícia federal atestando sua autoria aos croquis e 4. Uma quarta retificando o resultado do segundo laudo para também reconhecer sua autoria.

Dito isso destacou: “Da análise cronológica dos autos, vemos os dois primeiros, ambos fornecidos pela polícia do Exército que deixam de apontar sobre punhos gráficos” e na sequência, Bolsonaro arremata:

Curiosamente, o quarto laudo, o último na ordem cronológica, fornecido pela Polícia do Exército, assinado pelos mesmos peritos do segundo laudo e um perito do primeiro (Newton Prado Veras Filho) é desfavorável ao justificante, usando inclusive a mesma terminologia da Polícia Federal, ‘PROMANARAM’ de um mesmo punho gráfico. A mentira que se quer forjar sobre este justificante desmorona-se nas perícias contraditórias, ora mencionadas”.

Ou seja, Bolsonaro transformou o que constituía uma “complementação” ao segundo laudo em um quarto laudo autônomo, de modo que em vez de 2 X 0 (dois laudos atestando sua autoria sobre os croquis versus um inconclusivo que nada revela), ele concebeu 2 X 2 (dois laudos atestando sua autoria versus dois contrários a ele).

Melhor explicando, o capitão que de ‘bobo’ não tem nada, desenvolveu uma tese interessante, de aparência tola em uma verdadeira ‘armadilha’, mudou o sentido da expressão “inconclusivo” que quer dizer: ‘ilógico’ ou ‘o que não demonstra nem prova nada’ em algo a favor dele para assim chegar a um surpreendente ‘empate’.

Nessa perspectiva, Bolsonaro dá a entender que o quarto laudo (na verdade, segundo complementado) seria contraditório aos dois primeiros, o que não é verdade, visto que o segundo só foi considerado inconclusivo no início, pois depois, após ele fornecer novos padrões gráficos, passou a ser “conclusivo”, no sentido de apontar que os croquis partiram de seus punhos.  

Foi o que ele quis dizer quando asseverou:

Tais exames, pelas contradições que encerram, nada servem como matéria de prova. Ademais, é profundamente suspeito o quarto laudo, cujos peritos repetem os termos do último laudo da Polícia federal e desmentem os pareceres de ambos no primeiro e segundo laudos. Não é demais repetir que os croquis examinados nada tem a ver com o fantasioso “Plano Terrorista”. 

Na sequência o Ministério Público Militar apresentou parecer escrito onde desprezou a primeira perícia por inconclusiva e tampouco considerou a segunda antes de ser complementada já que ela acabou sendo superada.

Em síntese sustentou que:

o Justificante não conseguiu se justificar”, “os autos retratam conduta que, inquestionavelmente, o coloca na inconfortável posição de incompatibilidade para o oficialato”, pois “o plano codinominado Beco sem Saída objetivando explodir bombas em unidades da Vila Militar, da Academia Militar das Agulhas Negras em Recife, no interior do Rio de Janeiro e em vários quarteis, sob protesto de chamar a atenção para os baixos  vencimentos dos militares, se verídico, ou quixotesco, foi realmente descrito pelo justificante à então repórter da revista Veja, Cássia Maria”.

Ao fim, o Ministério Público Militar recomendou ao Egrégio Colegiado Castrense “considerasse o capitão Jair Messias Bolsonaro culpado, declarando a sua incompatibilidade com o oficialato e consequente perda do posto e da patente, tudo nos termos do art. 16, inciso I, da lei 5.836/72. ” 

Embora Bolsonaro houvesse dito encontrar-se sem advogado, a Dra. Elizabeth Diniz Martins Souto se apresentou ao plenário da corte no dia 16 de junho de 1988 como sua patrona e, nessa condição, fez sustentação oral por aproximadamente 32 minutos.

Em sua explanação, ela citou algumas contradições da revista Veja, reclamou do tratamento dispensado a Bolsonaro no dia de sua formatura na EsAO quando foi impedido de permanecer no recinto e no que tange a prova técnica, fez referência a dois laudos como “inconclusivos” e disse que a última perícia do Exército mudou o resultado de um desses dois, insinuando que foi elaborado um “laudo encomendado” já que o último praticamente repetia as mesmas palavras do laudo da PF, desfavorável ao seu cliente.

Encerrou, pedindo ao Superior Tribunal Militar que considerasse o capitão Bolsonaro “justificado e não culpado” “porque não restou provado o libelo acusatório”.

Os ministros julgadores então começaram a proferir seus votos. Todos eles abordaram Bolsonaro por distintos critérios, perspectivas e cada qual com a sua ‘visão de mundo’ sopesou os fatos dando maior relevo a um ou outro fator, porém, aqui nos limitaremos a lembrar os ‘pontos de vista’ que foram mais recorrentes ou que mereceram maior destaque.

O ministro-relator Sergio Ary Pires foi o primeiro a votar e concluiu sua explanação dizendo: “(…) considerando as profundas contradições existentes nos quatro exames grafotécnicos constantes dos autos, dos quais dois não apontam a autoria dos croquis, enquanto outros dois atribuem-na ao justificante (…) este Tribunal não encontrou, nos autos, elementos de convicção bastantes para imputar ao Justificante, sem sombra de dúvidas a autoria dos citados croquis. IN DUBIO PRO REO”.

O ministro-relator, portanto, votou em favor de Bolsonaro (1 X 0).

O ministro-revisor, Aldo da Silva Fagundes começou fazendo um breve “registro de caráter psicológico” do Justificante, o qual desenvolveu a partir de três indagações que fez e ele mesmo sugeriu resposta. 

Seria ele um insano? Há certas infantilidades, certas atitudes que surpreendem, mas é muito difícil concluir pela insanidade mental deste homem”. “Seria um homem radical, interessado em subverter a ordem pública, um terrorista, enfim?” Contraria tudo que é lógica, tudo que é uma análise sensata”. E, continuou: “Eu sempre ouvi dizer que o general Newton Cruz é um homem de direita, um homem radical – e este capitão (Bolsonaro) tem pelo general uma enorme admiração. Mas este relacionamento, até fraterno, será suficiente para dizer que este jovem é um terrorista, comprometido com o tumulto da vida institucional do país? Não tenho como chegar a esta conclusão”.

Para o ministro-revisor, todo o acontecido “marcou o comportamento de Bolsonaro” e, “por um momento até alterou sua normalidade psíquica, fazendo-o pensar que era o verdadeiro líder do Exército brasileiro”, mas “foi um episódio, vai ser superado pelo tempo, e ele pode perfeitamente continuar sendo um oficial útil para o Exército brasileiro, porque é um homem honrado, um homem digno, não há nenhuma acusação moral grave a respeito da conduta dele”. 

O ministro-revisor seguiu o voto do relator a favor de Bolsonaro (2 X 0).

O ministro Haroldo Erichsen da Fonseca foi o primeiro a abrir divergência, para ele: “Não cabe ao capitão, na ponta da linha, tomar para si os problemas do alto escalão”, “os dois capitães (Fabio Passos e Bolsonaro) estavam querendo quebrar a hierarquia do Exército”, afirmou!

Quanto a prova técnica disse que da análise dos “três laudos grafotécnicos”, principalmente o da polícia federal, o “órgão de maior capacidade” restou claro “que o croqui promanou do nosso capitão Bolsonaro”, tendo por fim salientado: “O plano ‘Sem Saída’ não era para ser executado. Uma idiotice, um engodo, só jogou o problema” e finalizou: “Bolsonaro quer se projetar ainda mais como líder do Exército e o líder do Exército é o ministro. Não pode se contrapor ao ministro. Está quebrada a hierarquia nesse sentido”.

O ministro Haroldo Erichsen da Fonseca assim votou contra Bolsonaro (2 X 1).

O ministro José Luiz Clerot começou lembrando o padre Antônio Vieira “Quem julga com o entendimento, pode julgar bem, e pode julgar mal, quem julga com a vontade, nunca pode julgar bem. Nunca julguei com paixão.” Disse isso para cravar que se recusava supor que a revista Veja fosse se prestar, irresponsavelmente a publicar uma matéria desse jaez.

Sobre a questão técnica, a principal da discussão, disse: “Ainda que se queira impugnar os laudos existentes não se pode negar que há pelo menos um fumus boni Iuri, ou fumaça do bom direito para afirmar que as letras e aqueles croquis são do punho de Bolsonaro” (…) “não quero lançar suspeitas sobre os laudos feitos pela área militar – porque há um certo espirt de corps que deve ter funcionado, – mas não funcionou na Polícia Federal.”

E com o propósito de contrapor o relator que aplicou o princípio in dubio pro reo a favor de Bolsonaro, lembrou do art. 326 do CPPM que estabelece que o juiz não ficará adstrito ao laudo, podendo aceitá-lo ou rejeitá-lo, no todo ou em parte para ao final dizer:

Ele pode até abandoná-los, mas antes de abandoná-los tem primeiro que se render às evidencias, sob pena de não estar atento à prova dos autos. Se existem laudos discordantes, e vem um terceiro do Instituto de criminalística, mais especializado, afirmando ou dissipando as dúvidas existentes, não há por que não se acatar este terceiro e último laudo. Essa é a realidade.”

Já caminhando para conclusão, este ministro acrescentou:

O problema da disciplina nas Forças Armadas, principalmente nessa faixa de capitão está tão ruim quanto em 1964” (…) “Está gravíssimo” (…) “São atraídos como cordeiros por esses dois loucos (Bolsonaro e Fábio Passos)” (…) “Nos últimos decênios é o fato mais grave, de repercussão negativa maior, de maior conteúdo antiético, de maior conteúdo violador das normas, da disciplina e da hierarquia que já se passou por esse país no âmbito das Forças Armadas. Nunca, nem antes de 1964, se me falha a memória, um capitão teve coragem de afrontar um chefe militar como se afrontou”.

Com tal manifestação, evidentemente o ministro José Luiz Clerot votou contra Bolsonaro (2 X 2).

O ministro George Belham da Motta, diferentemente dos demais não se debruçou circunstanciadamente sobre os fatos, fez considerações superficiais e genéricas sobre todo o apanhado, destacando que Bolsonaro errou ao publicar o artigo “O Salário está baixo”, mas ao traçar um paralelo com o ministro Leônidas Pires Gonçalves a quem antes fizera uma piada dizendo que umas das virtudes dele foi unir o Exército, mas “contra ele próprio”, disse que o ministro do Exército errou pior e o fez quando ratificou o parecer final do Conselho de Justificação, avalizando a declaração de uma repórter da revista Veja.  

Para este ministro, a revista Veja “não vale o que come” e entre um e outro caso contado na sessão, sintetizou o que pensava, dizendo: “Essa revista visa dar furo de reportagem e jogar uns contra os outros. Essa revista não é digna de respeito” e dessa forma deixou clara sua posição.

O ministro George Belham da Motta votou a favor de Bolsonaro (3 X 2).  

O ministro Roberto Andersen Cavalcanti, no mesmo diapasão do voto de seu antecessor, após se dizer estarrecido e muto preocupado com o que estava acontecendo, disse que: “depois da apologia feita pelo ministro Clerot quanto à integridade absoluta das informações da revista Veja, de que seus reportes são verdadeiros vestais da verdade” só lhe restaria dizer: “Deus salve o Brasil” e desse modo, sem adentrar na questão dos croquis e/ou dos manuscritos atribuídos a Bolsonaro, mas seguindo a mesma linha de aversão a revista Veja deixou também evidente seu voto.

O ministro Roberto Andersen Cavalcanti votou a favor de Bolsonaro (4 X 2).

O ministro Rafael de Azevedo Branco começou reconhecendo que por quatro ou cinco vezes tendeu ir para um lado e depois voltou, cujo movimento pendular se deu porque sempre esteve preocupado em achar a “verdadeira verdade” já que havia indícios contra ambas as partes e quanto ao laudo grafotécnico disse: “É fraco, porque pegou apenas um ou outro caractere”. Enfim, mostrou-se inseguro e na dúvida preferiu manter cautela.

O ministro Rafael de Azevedo Cavalcanti votou a favor de Bolsonaro (5 X 2).

Veio, então, o ministro Antônio Carlos de Seixas Telles, ex-escrevente juramentado e juiz militar de carreira, procurou se ater mais as perícias, porém estranhamente não disse nada sobre o “laudo de complementação” da polícia federal que modificou o segundo laudo do Exército, mas foi contundente em criticar o laudo do Instituto de Criminalística por não ter identificado as “coincidências” entre o padrão gráfico e os croquis, o que seria elementar. Sendo assim, declarou “a perícia não me convenceu” e empregando o contido no art. 326 do CTM que dispõe não estar o julgador adstrito ao laudo, entendeu que os laudos não lhe davam condições suficientes para convencê-lo da prática de que se pretendia comprovar.

O ministro Antônio Carlos de Seixas Telles votou a favor de Bolsonaro (6 X 2).

O ministro Alzir Benjamin Chaloub fez questão de exaltar o voto do ministro relator ao qual considerou “brilhantíssimo” e nessa toada, fez alusões genéricas a “acusações não comprovadas”, “justificativas mal alicerçadas” e não poupou críticas a repórter da Veja, afirmando ter ela mentido muito e, ao final, não demonstrou o menor pudor ao dizer que:

repórter não é flor que se cheire” e que “Ele (Bolsonaro) tinha contatos com a criatura que é pouco recomendável, essa é que é a verdade e perigosa, uma coisa de você criar uma cascavel dentro de casa. Você dominá-la, controla-la e tudo, mas está arriscado a qualquer momento te dar um bote” e nesse tom concluiu o voto.

O ministro Alzir Benjamin Chaloub, é claro, votou a favor de Bolsonaro (7 X 2).

O ministro Paulo Cesar Cataldo foi objetivo:

não temos nenhuma prova quanto ao fato principal”. “Temos o laudo da polícia federal, ainda assim é indício”. “O fato de ser do punho dele não quer dizer necessariamente que tenha sido feito naquele apartamento (do capitão Fábio Passos) afirmou”. Fez referências a “indícios e contraindícios” e terminou fazendo uma previsão: “este rapaz vai se sair muito mal no Exército”, mas como havia “um mínimo de dúvida” não podia votar contra.

O ministro Paulo Cesar Cataldo assim votou a favor de Bolsonaro (8 X 2).

Outros três ministros, cujo teor dos votos não se tem conhecimento, mas só o resultado foram: Rui de Lima Pessoa que votou a favor de Bolsonaro (9 X 2) e de Luiz Leal Ferreira e Antônio Geraldo Peixoto (presidente da sessão) que votaram contra (9 x 4).

 Com o resultado proclamado, o Acordão foi lavrado com a seguinte redação:

Capitão do Exército acusado de conduta irregular e prática de atos atentatórios à honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe. Carência de prova testemunhal a confirmar as acusações. Contradições em quatro exames grafotécnicos compromete o valor da prova pericial, impondo a rejeição dos mesmos à luz do art. 325 do CPPM. Rejeitadas as nulidades arguidas pela defesa por intempestividade e por inobservância de formalidade de seu exclusivo interesse. Improcedentes as acusações, inclusive as de infringência de preceitos da ética e do dever militar, declara-se o oficial ‘NÃO CULPADO’. Decisão por maioria.”

A revista Veja publicou o resultado do julgamento, com a seguinte chamada: “Palavra final – STM absolve capitães da Beco sem Saída” e segundo o autor do livro: “O cadete e o capitão – A vida de Jair Bolsonaro no quartel” (ed. todavia), de onde foram tiradas todas as informações deste artigo, a revista Veja ainda errou quando comentando a decisão se referiu somente ao “laudo inconclusivo” do Exército e ao “outro da Polícia Federal”, o que para ele, Luiz Maklouf Carvalho (o autor do livro) indicava certo desconhecimento dos fatos, talvez, provocado pelo excesso de prudência em procurar fazer uma “cobertura à distância para não parecer que estava fazendo campanha contra o capitão Bolsonaro”.

Conta a lenda que o capitão não ficou muito à vontade com a “vitória”, não! Amigos o teriam alertado que o ministro do Exército quando soube do resultado ficou “furioso” e que Bolsonaro já se sentindo perseguido por ter ficado na “geladeira” e “sem serviço” desde a fase de sindicância quando foi transferido da Vila Militar para trabalhar no QG do Palácio Duque de Caxias, temendo uma represália maior do alto comando, preferiu largar o Exército para tentar a sorte na política.

Outro boato diz que uma decisão o expulsando do Exército poderia ocasionar uma espécie de “insurreição” por parte de praças, sargentos e suboficiais, daí porque o STM teria preferido não o condenar desde que o capitão se afastasse da corporação de uma vez por todas.

De qualquer forma, esse julgamento deixa algumas incógnitas e a maior delas, sem dúvida é a levantada por Maklouf e diz respeito a aberração hermenêutica referente a interpretação dada as perícias.

É claro que a “quarta perícia” na cronologia das vezes que se precisou da intervenção de peritos, a rigor, não era uma perícia propriamente dita (autônoma), ela não passava de uma complementação à segunda que quando foi feita não havia contado com o mesmo padrão gráfico que serviu ao corpo técnico da polícia federal, daí a necessidade de complementação.

Nesse caso, se foi uma complementação é lógico que o primeiro resultado da segunda perícia, tido por “inconclusivo” foi alterado para “afirmativo”, afirmativo para os dois quesitos do laudo pericial que visava saber se: 1. O padrão gráfico contido no documento nº 1 é bastante capaz de permitir a comparação com a grafia de outros documentos, manuscritos do próprio punho do Cap. Art. Jair Messias Bolsonaro e se 2. O tipo de grafia, talhe e letra, inclinações e variantes, coincidem com o mesmo punho

Ora é claro que só a primeira perícia foi inconclusiva, pois a segunda e a terceira foram induvidosas em atestar a autoria dos croquis e dos manuscritos a Bolsonaro.

A pergunta que não quer calar é a seguinte: como acreditar que o Superior Tribunal Militar tenha sido leviano ao ponto de cair na armadilha do capitão Bolsonaro, primeiramente por considerar a complementação à perícia como uma quarta independente e, depois, por emprestar a expressão “inconclusiva”, um raciocínio que contrasta com a própria etimologia da palavra, pois o que é inconclusivo não pode levar a conclusão alguma, mas no julgamento levou a ideia de algo a favor do réu? 

Sim, porque se inconclusivo fosse mesmo inconclusivo, duas assertivas inconclusivas não chegariam a somar nada, mas para empatar com as duas perícias indicativas de culpa, elas assumiram a conotação de benéficas ao réu para daí abrigar o princípio in dubio pro reo da forma mais inusitada de que se tem notícia.

Não se pode aplicar este princípio em situações heterogêneas, se a hipótese fosse de se decidir sobre vários laudos, todos inconclusivos, o princípio poderia ser aplicado tranquilamente, assim como também seria o caso se, por exemplo, houvessem dois laudos antagônicos entre si, um afirmando não haver dúvida de que os desenhos resultaram de determinado punho contra outro atestando não haver dúvida que não resultaram do mesmo punho.

Porém, a hipótese não comportava dúvida razoável alguma e por isso, o princípio in dubio pro reo foi aplicado de forma flagrantemente tendenciosa.

E nem se cogita de imputar má-fé a Bolsonaro porque o réu pode se calar e pode inclusive mentir, tudo isso faz parte do lastro da autodefesa, o que se questiona é como uma corte superior de justiça comprou uma tese dessa.

Diz a lei que o juiz não está adstrito ao laudo, é verdade, ele pode desprezá-lo no todo ou em parte, mas tal não significa que possa fazer isso por mero capricho, sem fundamentar ou apontar uma razão plausível para negar-lhe credibilidade, pois se assim o fizer, estará julgando contra a evidência dos autos.

Foi o que aconteceu, não se observa dos votos proferidos, nenhuma fundamentação razoável para deixar de adotar as evidências extraídas do conjunto probatório, produzido pelas perícias que apontavam para certificação de autoria ao capitão Bolsonaro, como bem ressaltara o ministro José Luiz Clerot, único que julgou “sem paixão” e com olhos totalmente voltados para o processo, sem tergiversar.

Poder-se-ia até dizer que os laudos embora capazes de apontar que os croquis foram feitos por Bolsonaro, não teriam o condão de demonstrar que foram confeccionados no dia da reunião realizada na casa do capitão Fabio Passos e que por isso, não seriam capazes de sozinhos indicar que faziam parte do plano terrorista, tese até levantada por alguns ministros, mas que não foi a vencedora.

O fato é que não houve “contradições nos quatro exames” de modo a “comprometer o valor da prova pericial” conforme lamentavelmente acabou constando do Acórdão, isso é uma inverdade! Simplesmente porque só houve três exames grafotécnicos, um inconclusivo que poderia ser até desprezado (o primeiro) por que foi feito sobre cópias xerográficas e dois assertivos da autoria de Bolsonaro (um realizado pela polícia técnica do Exército e outro pela Polícia Federal) 

Outra situação surpreendente, quase inacreditável, não fosse o farto material coletado por Maklouf que inclui documentos e áudios extraídos do processo é que os julgadores não podiam julgar o caso movidos só por suas impressões pessoais acerca da revista Veja e/ou da repórter, como efetivamente fizeram.

Há trechos onde os ministros externam – sem o menor constrangimento – suas antipatias, tanto em relação a revista, como em relação a pessoa da repórter, Cassia Maria Rodrigues que, embora não fizessem parte do processo como réus, foram condenados como tais. Um absurdo que bem retrata como aquelas “sessões secretas” do STM podia formar convicção sobre pessoas ou situações, sem se aterem as provas do processo, verdadeira reminiscência do período ditatorial de triste lembrança.

E, assim, conforme consignara a revista Veja em sua memorável edição nº 1033 de 22 de junho de 1988: “A sentença judicial do STM encerra o caso que a partir de agora passa a fazer parte da história da corte, da história de Veja e da biografia do capitão, bem como de seu prontuário”.

Esperamos que a história desse julgamento sirva também de paradigma para demonstrar que sem um verdadeiro Estado Democrático de Direito onde não haja espaço para “sessões secretas”, nem desrespeito aos direitos e garantias individuais é impossível se realizar o ideal de JUSTIÇA!

Rio, 27 de abril de 2021.    

Mini currículo:

Advogado criminalista, mestre em Ciências Criminais e Criminologia pela UCAM-RJ,

 Diplomado pela Escola Superior de Guerra no CAEPE – Curso de Altos Estudos e Política Estratégica, 

Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – Comissão de Direito Penal

www.arnaudadvocacia.com.br

walterarnaud@uol.com.br

Essa brevíssima abordagem não possui a pretensão de discorrer a fundo sobre o tema ‘reconhecimento de pessoas’. A proposta aqui é só chamar a atenção sobre um único ponto ou aspecto que, embora seja tido como de somenos importância, vem demonstrando as mazelas de nosso sistema de justiça criminal, ainda operando no fluxo de uma legislação caótica e no rastro de uma jurisprudência preguiçosa. Situação que tem servido à marginalidade de prato cheio para fazer de ingênuos ou tolos, os operadores públicos do processo brasileiro. Portanto, longe de desenvolver alguma tese ou artigo científico sobre o tema, cuja literatura jurídica já possui convincentes trabalhos, esta reflexão só visa alertar quem atua no ramo a refletir a respeito. Refiro-me precisamente aos delegados de polícia, aos promotores e aos juízes.

Trata-se, pois, de analisar como a comunidade jurídica vem tratando do RECONHECIMENTO DE PESSOAS que nada mais visa, senão, precisar com exatidão a pessoa contra a qual se realizam determinadas imputações. Fenomenicamente corresponde a uma sensação de identidade entre uma percepção presente e uma percepção passada, na qual se reconhece uma pessoa, quando, vendo-a é possível resgatar sua imagem gravada no seu subconsciente[1].

Procedimento comum, tanto nas delegacias de polícia como nas varas criminais, onde tanto pode ocorrer por meio de ‘fotografias’ ou na forma ‘presencial’, mas sempre envolto a um desleixo tal que só aproveita à fraude processual, cada vez mais eficiente em mandar para o sistema penal, pessoas ‘inocentes’. O artigo 226 do código de processo penal estabelece toda uma forma de observância obrigatória[2].

Daí se concluindo que somente o reconhecimento visual e presencial possui prescrição legal. Sua natureza jurídica é de meio de prova, na medida em que visa identificar uma pessoa sobre a qual repousa determinada suspeita de prática criminosa. Sua validade está condicionada a observância do devido processo legal em toda sua plenitude.

Logo, tudo mais que se preste a identificação pessoal onde não haja um processo de suspeição em curso e não seja feito perante um Juiz de Direito, sob o pálio do contraditório, não pode ser considerado meio de prova, mas mero ato de identificação.

Surgindo aqui a primeira ilação importante: Identificação fotográfica é aquela feita a partir de fotografias aleatórias entregues ao sujeito para apontar o possível autor de um crime. Possui a natureza jurídica de mero meio de investigação porque não induz nenhum outro indício de autoria anterior ou concomitante. Já o reconhecimento fotográfico é o ato pelo qual se submete ao sujeito um álbum com fotografias selecionadas de pessoas já suspeitas de ser o autor do crime. Possui a natureza jurídica de meio de prova precário porque embora pressuponha uma suspeição em curso, o ato de apontamento se dá fora do alcance de um juiz de Direito e sem o contraditório[3].

Ocorre que na prática forense nada do que se disse acima transcorre de maneira muito clara. Basta dizer que no âmbito policial, o acervo fotográfico surge sem nenhuma explicação plausível. Nunca se sabe ao certo sua procedência: se tais fotografias foram extraviadas ou foram trazidas à delegacia policial a partir de ocorrências policiais anteriores; se foram colhidas da própria investigação em curso ou se foram fruto de algum órgão de identificação civil onde já continha a imagem da pessoa.Portanto, tendo em vista que o reconhecimento fotográfico não possui previsão legal e, como dito acima, é considerado meio de prova precário, ele, sozinho, jamais deveria ser admitido como elemento de convicção para fundamentar uma prisão cautelar, no máximo, poderia legitimar o processamento do indivíduo, mas nunca comprometer sua liberdade.

Infelizmente, em tempos onde vige nas grandes cidades brasileiras um poder paralelo exercido por milicianos e/ou maus policiais desprovidos de qualquer escrúpulo, todo e qualquer reconhecimento de pessoas para ser válido – enquanto meio de prova a levar alguém à cadeia ou à condenação – necessita ser realizado na presença de um Juiz de Direito com todas as garantias constitucionais. Assim é que, em se tratando de reconhecimento presencial faz-se necessário que o juiz esteja atento para que ‘item por item’ do art. 226 do CPP seja rigorosamente observado, sob pena de frustrar seu objetivo, pois o procedimento é irrepetível, na medida em que se afigura impossível reconstituir na cabeça do reconhecedor as condições de ineditismo existentes na primeira oportunidade. Uma segunda vez restará sempre prejudicada pelas impressões gravadas na memória da pessoa instada a reconhecer.

No entanto, mesmo nas Varas Criminais onde seria improvável se acreditar que alguma formalidade legal pudesse ser desatendida, a vivência nas salas de audiência demonstra uma realidade assombrosa, onde pouquíssimas vezes se veem juízes preocupados em atender à lei ipse literis.

Na maioria esmagadora das vezes é possível identificar, pelo menos, dois grupos: o daqueles que utilizam o artigo 226 do CPP como mero parâmetro procedimental, mas não como um modelo rígido a ser seguido e o grupo daqueles que sequer utilizam o rito estabelecido no artigo 226 do CPP.

Para o primeiro grupo, não raro o indivíduo que deve fazer o reconhecimento é mal orientado a descrever a pessoa a ser reconhecida antes que lhe seja posta à sua frente (inciso I); noutras, sequer a pessoa a ser reconhecida guarda alguma semelhança com as que figuram ao seu lado (inciso II); e por fim, quando o documento é lavrado, tampouco ele costuma retratar com exatidão, tudo que foi realizado (inciso IV). Já para o segundo grupo que nem considera o ato de apontamento ou identificação de pessoa, parte integrante de um reconhecimento propriamente dito, tudo, fica circunscrito ao regime de prova testemunhal ou fica subentendido como prova atípica e, nesse caso, é admitido com base nos princípios da liberdade probatória e da livre apreciação da prova.

Todavia, como o reconhecimento presencial costuma ocorrer no bojo de uma instrução processual formal que conta com todos os atores processuais: juiz, promotor, advogado e réu, eventual vício ocorrido nessa fase, pelo menos, pode ser remediado por protesto da defesa técnica ou prequestionado para viabilizar possível recurso.

O pior, porém, acontece quando a arbitrariedade se dá longe dos olhos desses personagens. É o que acontece na fase pré-processual, onde basta existir um policial desonesto ou mau-caráter para pôr em descrédito todo o sistema de justiça criminal. A fraude acontece justamente onde falta regulamentação legal. No ‘reconhecimento fotográfico’ que, como já se disse, não deveria ostentar muito prestigio, notadamente em função da precariedade de suas garantias.

É dizer, aqui, a facilidade para levar a erro as autoridades públicas responsáveis pela higidez do sistema de justiça criminal é muito grande. E nem se diga que é fantasiosa a hipótese de alguém pretender ludibriar a justiça para ver preso, processado e até condenado, alguém que sabe não ser o autor do crime.

Afinal, muitas são as razões que justificam um enredo desses e, embora se ajuste bem a um excelente roteiro de cinema, isto nada possui de ficção. Certamente acontece aos montes por aí, principalmente nas regiões dominadas por milícias. Entendendo-se por milícias: grupos que controlam comunidades urbanas de baixa renda; formados por policiais, bombeiros, vigilantes, agentes penitenciários e militares (em serviço ativo ou fora dele), mas que contam com o apoio de políticos e lideranças locais para impor suas próprias leis de forma arbitrária, desonesta e violenta.

Nesse contexto, não é difícil imaginar um miliciano, policial civil que querendo se vingar de alguém, de quem possua apenas o nº de seu CPF ou RG consiga junto a um órgão de identificação civil sua fotografia; junte-a ao ‘banco de dados’ de pessoas procuradas na DP e espere a ocorrência de um homicídio com autoria desconhecida para, com a ajuda de um comparsa disposto a apontar o indivíduo inocente como autor do crime, o auto de reconhecimento fotográfico seja lavrado sem dificuldade alguma.

Sendo certo que – daí em diante – tudo tende a transcorrer, quase, automaticamente, pois quem duvida que frente a tal ‘auto’ e perante ao termo de depoimento do reconhecedor dizendo ter presenciado o crime, o delegado de polícia não se convença da necessidade da prisão cautelar da pessoa apontada? Que o parquet não represente por sua prisão preventiva ao Juiz criminal? E que o juiz, então, decrete a prisão sem pestanejar?

O leitor desavisado talvez não acredite que isso possa acontecer, mas quem milita na área criminal e possui alguma vivência, bem conhece as mazelas do sistema de justiça criminal brasileiro.

Infelizmente a força apelativa que um auto de reconhecimento fotográfico produz no Brasil ainda é muito grande. Sua simples existência em um procedimento de natureza criminal é, na maioria das vezes, o principal fator, senão o único capaz de caracterizar os “indícios suficientes de autoria”. Expressão empregada no CPP para compor a fundamentação de uma prisão cautelar ou justificar o recebimento de uma denúncia, enquanto petição inicial de um processo criminal. Isso significa que muitas autoridades públicas que militam no processo penal emprestam ao auto de reconhecimento fotográfico, um valor extremo que acaba por ofuscar a importância de outros aspectos que se merecessem a devida atenção, não referendaria certos desígnios processuais, como prisões desnecessárias e oferecimento de denúncias precipitadas.

Ora, é relativamente comum que frente a um auto de reconhecimento, o delegado de polícia, em vez de não economizar esforços para colher algum outro indício de autoria se contente só com ele. Assim, deixa-se de buscar uma prova material da passagem do sujeito pelo cenário do crime como, por exemplo, a coleta das impressões digitais contidas na arma utilizada ou uma evidência orgânico-biológica (exame de DNA sobre sangue, fio de cabelo ou saliva) para certificar-se de que a pessoa reconhecida coincide mesmo com as evidências que a perícia colheu do local do crime.

O grau de torpor ou indolência da autoridade policial, às vezes, é tão surpreendente que uma simples providência como a de convocar o suspeito/reconhecido para prestar declarações sobre o que teria feito no dia do crime é comumente deixada de lado, o que significa dizer ser plenamente possível existir alguém sendo apontado como autor de um crime grave ou ter uma ordem de prisão contra si decretada, enquanto se encontra em casa dormindo. Uma monstruosidade!

Assim, tudo conspira contra o indiciado que não tendo podido se defender, sequer mostrar sua versão sobre os fatos ou se fazer assistir por advogado, ainda, conta com todas as más impressões causadas pelo crime. Quanto mais bárbaro tiver sido o crime; quanto mais repercussão midiática houver provocado; quanto mais pavor houver disseminado, maiores serão os argumentos utilizados contra a preservação de sua liberdade.

Nesse ambiente hostil não se compreende porque a polícia, enquanto legítimo órgão responsável pela elucidação do crime e sua autoria, não costuma demonstrar a menor preocupação em investigar a pessoa do reconhecedor. De quem se trata? Qual o seu vínculo com o local do crime? Qual a sua relação com a pessoa da vítima? Se possui antecedentes criminais, etc.

Afinal, para além de servir como testemunha ocular do crime, ela própria pode ser a mandante ou executora do delito e, ainda que não se pretenda ver ninguém que chegou ao processo como testemunha virar réu, o mínimo que se almeja é que essa pessoa tenha a sua credibilidade devidamente checada para não conduzir alguém inocente a uma condenação injusta.

Ora, o estudo da criminologia indica que, muitas vezes, interessa mais a polícia ter ‘alguém’ para apontar como autor de um crime, ainda que não seja o seu legítimo responsável a não ter ‘ninguém’ para apresentar nas estatísticas finais da Segurança Pública. Bons gráficos e significativos índices de desempenho policial, ainda que ‘maquiados’ podem ser mais interessantes que o desafio em procurar a fundo os reais responsáveis por cada delito noticiado.

A lógica funciona mais ou menos assim: é preferível passar a ideia de que os órgãos de segurança estão elucidando crimes. Notícia sempre sedutora aos próprios detentores do poder político e à opinião pública, a que deixar transparecer eventuais indícios de avaria na engrenagem de persecução penal. Quanto mais rápido se produzir notícia de combate à criminalidade, mais rápido também se produz o sentimento de alívio na sociedade. É o efeito perverso de um utilitarismo deturpado! Nesse diapasão, também o Ministério Público acaba enveredando pelo mesmo caminho do delegado já que atuando como dominus litis, sua atenção termina involuntariamente comprometida só com o conceito de “ordem pública”. Assim, lançando mão de outras expressões igualmente porosas de conteúdo como para “acautelar o meio social” ou para “garantir a credibilidade da Justiça”, o parquet costuma representar pela prisão preventiva do indiciado, sem prova segura de sua participação no crime.

E o que se dizer do juiz? Ora, este atuando como se fora a última peça de um dominó a tombar, também é seduzido pela falsa aparência de normalidade, salvo se se tratar de um magistrado muito experiente, capaz de perceber que o indivíduo pode estar sendo preso e processado sem ter conhecimento de nada do que está acontecendo. Tal desiderato não seria tão terrível assim, caso não se soubesse que depois de preso, o custo para promover uma possível revogação da prisão preventiva no Brasil é extremamente alto e demorado. Na fase processual, notadamente nos crimes graves, dificilmente um requerimento de liberdade obtém sucesso sem que antes tenha visitado, repetidas vezes os gabinetes dos promotores e exaurido o sumário de acusação, o que costuma consumir considerável tempo.

Nesse cenário, não é difícil imaginar que a condenação do sujeito seja um desdobramento natural, pois não restará a sua defesa técnica alternativa alguma, senão opor a resistência processual mais difícil de ser exercitada em juízo, a ‘negativa de autoria’ já que todas as circunstâncias diretamente ligadas ao fato não poderão ser exploradas, simplesmente porque delas o réu nada sabe ou conhece, pois se estava em outro lugar, é evidente que não poderá acrescentar nada em relação ao crime. Desse modo, tudo que sobra para o réu se resumirá ao dia onde efetivamente esteve, cujas circunstâncias – em geral – são inacessíveis por sua memória tendo em vista se tratar de um dia muito comum e de difícil resgate pelo seu subconsciente. Por outro lado, se conseguir lembrar, o que normalmente só acontece se a data coincidir com a de um evento muito relevante para ele, tipo: festa de aniversário ou dia do falecimento de um ente querido, dificilmente os elementos sensíveis (vestígios materiais e/ou documentais) desse episódio deixarão de ser alcançados pelo tempo, deteriorando-se também. E, a depender das pessoas com quem esteve, em sendo parentes, suas declarações não terão validade alguma, em virtude da ausência do compromisso da verdade, conforme estabelecido pelo CPP. Ou seja; a ‘prova de defesa’ resultará absolutamente inócua.

Conclusão: uma sentença condenatória acontecerá no bojo de uma ação penal que sequer deveria ter sido intentada, visto que foi direcionada contra uma pessoa, no mínimo, mal identificada. E como se não bastasse essa sentença dificilmente conseguirá ser reformada, salvo se houver uma ‘revisão criminal’ (recurso), capaz de vencer a resistência de nossos tribunais superiores, ainda muito presos a um modo de pensar do século passado.

Afinal, nenhuma razão há mais para se acreditar que vícios ou deficiências verificadas no âmbito do reconhecimento de pessoas sejam considerados meras ‘irregularidades’, conforme teimosamente vem entendendo o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal. Uma jurisprudência que remonta uma época onde não se conhecia os sistemas tecnológicos de hoje e tampouco se conhecia os avanços da genética (DNA), capazes de identificar pessoas com grau de certeza, quase absoluto, indicando que o reconhecimento de pessoas (‘presencial’ e/ou ‘fotográfico’) não pode prescindir de outros meios de convicção fornecidos pela medicina legal e ciências forenses. O custo social de um reconhecimento mau feito, seja por fraude ou engano da memória de quem couber identificar outrem, não pode ficar circunscrito somente à pessoa do reconhecedor porque as suas sensações ou experiências sinestésicas são privadas, inacessíveis a quaisquer outras pessoas. A confirmação por outros meios de prova objetivos é essencial, sob pena de dar azo a prisões açodadas, processamentos sem lastros probatórios e condenações injustas, cujo fardo recairá somente sobre os ombros do próprio sujeito passivo do sistema penal.

A ideia de que vícios ocorridos na fase pré-processual não repercutem na fase processual porque, nesta, vigora as garantias do devido processo legal é outra utopia de que se necessita desapegar já.

Nada cura uma prisão injusta, independentemente de quando tenha ocorrido e por quanto tempo tenha durado. Nenhuma ordem de habeas corpus ou reforma de sentença penal condenatória compensa às chagas gravadas na personalidade de quem sofre uma violência desse jaez. A estigmatização e o etiquetamento acompanharão essa pessoa como se fosse uma tatuagem impressa na alma. Os operadores públicos do processo criminal (delegados, promotores e juízes), não podem mais se conduzir como se conduziam há décadas passadas. Não se admite mais delegados presidirem inquéritos policiais; membros do MP exararem manifestações e juízes proferirem decisões, movidos pelas mesmas impressões de outrora, até porque, a marginalidade também mudou.

É preciso que nossos operadores do direito superem a resistência atávica a nova realidade, pois todo pensamento humano só evolui quando arrasta à frente suas bases teóricas, forçando a formulação de novas formas de pensar, pois como bem asseverou Luís Roberto Barroso: “toda interpretação é produto de uma época, de um momento histórico, e envolve os fatos a serem enquadrados, o sistema jurídico, as circunstâncias do intérprete e o imaginário de cada um”[4].

Fica a dica: urge lançar um novo olhar crítico para o que se deve entender, como valorar e como admitir (ou não) o “reconhecimento de pessoas” no novo processo penal brasileiro.

Rio de Janeiro, 09 de julho de 2014.

[1] ALTAVILLA, Enrico. Psicologia guidiziaria – II processo psicológico e La verità giudiziale. Torino: UTET, 1948, t. I, p. 327.

[2] Dispõe o art. 226 do CPP: “quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:

I – a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;

II – a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;

III – se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou qualquer outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela.

PARECER: Comissão de Direito Penal Dr. Walter Arnaud Mascarenhas Jr sobre Projeto de Lei do Senado, nº. 312/2010 de autoria do Senador Antônio Carlos Valadares.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Penal – Princípio da Insignificância

EMENTA: I – Direito Penal (Parte Geral) e Processo Penal. II – Alteração do Decreto-Lei nº. 2.848/40 (Código Penal) para inclusão do Princípio da Insignificância. III – Desnecessidade de consagração legislativa. IV – Doutrina e Jurisprudência possuem mecanismos para integrar a lei sem acréscimo material de dispositivo. V – Solução ‘caso-a-caso’.

I – RELATÓRIO

Trata-se de consulta formulada à Comissão de Direito Penal do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB sobre o projeto de lei em epígrafe que visa inserir no corpo da legislação penal o ‘princípio da insignificância’ como fundamento para tornar atípicas as condutas incapazes de ofender o bem jurídico tutelado pela ordem jurídica.

Para o proponente a legislação penal deve conter dispositivos próprios com as seguintes redações:

Exclusão de Tipicidade Art. ‘22 – A’ salvo os casos de reincidência, ameaça ou coação, não há crime quando o agente pratica fato cuja lesividade é insignificante.

Atipicidade em razão da Insignificância da Conduta Art. ‘23 – A’ É atípica a conduta incapaz de ofender bem jurídico tutelado pela lei penal.

A justificativa para a alteração supra reside em que não basta a mera subsunção do fato a letra fria da lei para satisfazer o requisito analítico de tipicidade.

A tipicidade não se satisfaz só pelo aspecto formal, mas também pelo aspecto material, sendo necessária a efetiva ofensa ao bem jurídico.

Neste sentido sustenta que “ações toleradas pela coletividade ou causadoras de danos desprezíveis ao bem jurídico não se abrangem pelo tipo legal de crime”.

Na sequência, estabelece o paralelo entre o “crime de bagatela” e o “princípio da insignificância” para ressaltar não serem exatamente a mesma coisa e, destaca a impropriedade de uma corrente de promotores e juízes monocráticos que não reconhecem o princípio da insignificância como excludente de tipicidade penal.

Segundo crê, o argumento utilizado por essa corrente é o de que a “lei penal não faz referência à quantidade de lesão necessária para configurar-se um delito”, pois “não seria possível auferir o que é realmente insignificante, medindo o valor do bem para dar-lhe proteção jurídica”, o que “esvaziaria o Direito Penal” de sobremaneira. Daí porque a seu ver, tal corrente encontra-se ultrapassada, na medida em que considera apenas a tipicidade formal da conduta para extrair a hipótese criminosa, não possuindo a menor capacidade para enxergar além da prescrição legal.

Por outro lado, relembra o posicionamento jurisprudencial do STF que vem aplicando sistematicamente em suas decisões o princípio da insignificância em flagrante demonstração de vanguarda se comparado aos tribunais inferiores, ainda muito reticentes em aplicá-lo.

E, por fim, destaca o quão lamentável é a manutenção do sistema atual sob o viés do custo social, seja porque muitas vezes os acusados são presos (provisoriamente), embora sequer lhes caibam uma pena de prisão, fruto de uma condenação propriamente dita, seja porque a ausência do princípio da insignificância acaba favorecendo o encarceramento dos mais pobres em descompasso com os mais abastados que podem pagar bons advogados e fazer seus processos andarem mais rapidamente, fortalecendo a impressão de que existe dois pesos e duas medidas.

Esse é o relatório.

II – FUNDAMENTAÇÃO

O princípio da insignificância não constitui novidade entre nós e há muito vem sendo aplicado pela jurisprudência brasileira, embora ainda constitua um instituto de tímida aplicação.

Sem embargo da diferença sistemática entre princípio da insignificância e o que se deve entender por infração bagatelar, aqui de pouca valia, o fato é que tanto estes critérios, como outros conhecidos por adequação social e o do risco permitido existem para mediarem à força entre o poder punitivo e as liberdades individuais.

A questão reside em saber se tais critérios, a par de servirem para afastar a ilicitude da conduta ou a sua tipicidade – conforme o caso e a doutrina de seu tempo – necessitam de consagração legislativa.

No Brasil mesmo, todos, sabem que o princípio da insignificância está implícito no Código penal militar em seu art. 209, § 6º, assim redigido: “No caso de lesões levíssimas, o juiz pode considerar a infração como disciplinar”. Vê-se aí que o legislador outorgou ao juiz o poder-dever de declarar a ausência de tipicidade penal pela insignificância da ofensa ao bem jurídico principal (integridade física), acarretando somente consequências administrativas, de ordem disciplinar. Ou seja, prestigiou-se o caráter fragmentário do Direito Penal, remediando o injusto pela solução administrativa menos rigorosa.

Um fator complicador emerge já do próprio conceito da insignificância a luz do direito. Para Luiz Flávio Gomes e jurisprudência abalizada, trata-se de um preceito que reúne quatro condições essenciais para ser aplicado: 1 – A mínima ofensividade da conduta, 2 – A inexistência de periculosidade social do ato, 3 – O reduzido grau de reprovabilidade do comportamento, 4 – A inexpressividade da lesão.

Daí resulta uma complexa consideração axiológica de distintas categorias, demandando do operador do direito inferir do caso concreto, o que seja ou constitua: ‘a ofensividade da conduta’, ‘a periculosidade social do ato’, ‘o seu grau de reprovabilidade’ e ‘a inexpressividade da lesão’.

Decerto, nenhuma dúvida tenho em me solidarizar com o entendimento de que, para a configuração tipicamente criminal seja necessária a concorrência da tipicidade formal com a tipicidade material, aquela como sendo a ‘conflagração perfeita do ato praticado com a sua descrição na lei penal’ e esta como sendo ‘ valorização da relevância jurídico-penal da lesão’.

Essa tese, hoje pacífica na doutrina, traduz o resultado de anos de evolução dogmática, especialmente atribuíveis a Claus Roxin e Eugênio Raul Zaffaroni, o primeiro por seus contributos a própria ‘noção de insignificância’ e ‘risco permitido’ e ao segundo, pela criação de sua ‘teoria da tipicidade conglobante’, a partir das quais, ambos pretendem afastar a incidência ao tipo objetivo. Roxin valendo-se da ideia de que ‘não havendo criação de risco para o bem jurídico, não se pode cogitar em tipicidade’ e Zaffaroni ancorando-se na ideia de que ‘o que se proíbe realmente não é ordenado nem fomentado pelo direito’.

De qualquer modo, há que se ponderar até onde vale mais a pena apostar; na obediência a legalidade ou na discricionariedade e/ou valoração judicial. Afinal, como dissera Ferrajoli: A sujeição do juiz a lei já não é de facto, como no velho paradigma juspositivista, sujeição à lei somente quando válida, ou seja, coerente com a Constituição. E a validade já não é no modelo constitucionalista-garantista, um dogma ligado à existência formal da lei, mas uma sua qualidade contingente ligada à coerência – mais ou menos opinável e sempre submetida à valorização do juiz – dos seus significados com a Constituição. Daí deriva que a interpretação judicial da lei é também sempre um juízo sobre a própria lei, relativamente a qual o juiz tem o dever e a responsabilidade de escolher sempre somente os significados válidos, ou seja, compatíveis com as normas constitucionais substanciais e com os direitos fundamentais por elas estabelecidos. (FERRAJOLI, Luigi. O direito como sistema de garantias, apud SILVA FRANCO, Alberto. O juiz e o modelo garantista, publicado no Boletim nº. 56 – Julho /1997).

Por isso, cabe a reflexão se as ferramentas reducionistas do poder punitivo, em geral, salutares, merecem mesmo migrar da doutrina e da jurisprudência para a legislação ou não!

Certamente o Direito Penal moderno não duvida mais do acerto que constitui as correntes de cunho ‘minimalista’, ‘garantista’ e ‘fragmentário’, mas disso não se deduz a certeza de que seus préstimos poderão ser alcançados diretamente dos textos de lei.

Basta lembrar que atualmente nossos tribunais superiores estão vivenciando ativa discussão acerca da aplicação ou não do princípio da insignificância no âmbito da justiça castrense que, mesmo reconhecendo em seu código – para determinados casos – veem gerando dúvidas.

Em 21 de outubro de 2010 – por exemplo – o STF por 6 votos a 4 firmou precedente de que o princípio da insignificância não pode ser utilizado para beneficiar militares flagrados com reduzida quantidade de entorpecentes em ambiente militar, tendo o ministro Ayres Britto sintetizado: “O uso de drogas e o dever militar são como água e óleo, não se misturam. ”

Malgrado o acima, nos dois tribunais vem se aplicando o princípio da insignificância em furtos de pequena monta, como os de bala ou barras de chocolate em supermercados e congêneres.

Entretanto, em 30/03/2011, o STJ denegou uma ordem de habeas corpus para um policial que, no horário do serviço teria furtado de um supermercado uma caixa de bombons, colocada por baixo de seu colete militar. A decisão lastreou-se no entendimento de que, embora a lesão jurídica provocada fosse inexpressiva, a conduta do agente foi altamente reprovável, vista se tratar de um policial militar e encontrar-se fardado no momento do furto. Segundo o ministro Dipp, relator do HC, a conduta do policial não condizia com o “reduzidíssimo grau de reprovabilidade” exigível para o reconhecimento da insignificância, pois “o policial representa para a sociedade confiança e segurança”.

Em ambos os julgados (do STF e STJ) também foram influentes alguns princípios, próprios de natureza militar como os da hierarquia e disciplina, indispensáveis no regime jurídico castrense.

Porém, a situação pode ficar ainda mais embaraçosa em outros campos. Imagine-se a hipótese de um magistrado, em plena audiência, furtar uma caneta esferográfica de um advogado. Nesse caso, estando o projeto de lei sob comento em vigor, notadamente o art. “23 – A”, a pergunta que não quer calar é: Tal lei deve ser aplicada ou não? A conduta do juiz deve ser considerada insignificante?

A julgar pelo direito positivo, ‘sim’, mas será que os requisitos eleitos por nossa doutrina e jurisprudência recomendariam sua aplicação? Aqui, por muito mais razão, a resposta deve ser negativa. Afinal, se para um policial, a sociedade deve depositar confiança e segurança, o que se dirá de um juiz de Direito, a própria personificação da Justiça?

A mim parece que, embora louvável seja a iniciativa de tentar frear o poder punitivo, o viés legislativo pode trazer mais inquietação do que segurança jurídica.

É dizer, o fato de incluir-se na lei o princípio da insignificância, conforme proposto no projeto de lei, realmente traria novos horizontes para nossos ministros resolverem melhor a situação dos policiais militares citados? E o que dizer da hipotética situação do juiz?

Em minha modesta avaliação, não percebo grande vantagem, principalmente porque algo parece sugerir que em casos onde figure como possíveis imputados pessoas que por sua importância, a sociedade exige maior respeito, o requisito do reduzido grau de reprovabilidade comportamental sempre restaria intransponível. Conclusão: ou teríamos uma solução do ponto de vista legal adequada, mas injusta ou, teríamos uma solução do ponto de vista legal inadequada (contra legis), mas justa. Não sei o que seria pior! Acrescer no dispositivo do projeto de lei determinadas circunstâncias poderiam ser interessantes, mas aí não me atrevo a sugeri-las porque “a emenda pode sair pior que o soneto”, até porque, corre-se o risco de adentrar em outros meandros do injusto (culpabilidade e ilicitude), cuja parte geral do código penal brasileiro levou décadas para sedimentar.

A meu sentir, o problema não está na consideração da insignificância da lesividade prevista no artigo “22 – A”, tampouco na possibilidade de se admitir atípico o fato pela incapacidade da ofensa ao bem jurídico prevista no art. “23 – A”, mas na qualificação da conduta do agente.

III – CONCLUSÃO

Prefiro acreditar no bom uso da doutrina e do direito comparado para, quando não conflitante com o direito pátrio, modular a nossa jurisprudência, aperfeiçoando e estimulando cada vez mais a aplicação do princípio da insignificância nos casos concretos.

Aliás, faz-se importante lembrar que embora no Brasil seja comum emprestar-se ao princípio da insignificância caráter de generalidade, é bom deixar claro que para Roxin – tido por muitos como o seu criador – o princípio da insignificância não passa de um padrão interpretativo da clausula de reprovabilidade inserta no crime de constrangimento ilegal (Notigung, 240 StGB) do código penal alemão compondo, juntamente de outros princípios, o que se convencionou chamar de “doutrina dos princípios”. Sendo certo, porém, que funciona lá (na Alemanha) como mero limitador de um dispositivo legal da parte especial, sem eficácia generalizante.

Por outro prisma, para o “mal” suscitado pelo proponente do projeto quanto à questão da prisão (provisória) quando, nem na hipótese de condenação seja aplicável uma pena privativa, já que muitas vezes, essa liberdade só é alcançada quando o processo chega a um dos tribunais superiores, isto não ocorre por deficiência de norma de direito material (descriminalizadora).

É para a criminalização de condutas que se exige lei anterior definindo-a e não o inverso. Por conseguinte, tudo que não está na lei penal não é crime, pois a regra é que se possa fazer tudo, salvo as proibições previstas em lei.

Portanto, não é necessário haver outra norma permissiva na parte geral do código penal, os institutos já existentes são suficientes. A solução para minimizar a questão das prisões por condutas irrelevantes ou lesividades insignificantes deve ser extraída da norma processual, de onde é possível, por exemplo, aplicar-se os artigos 396 e 397, III do CPP para liminarmente se rejeitar a acusação ou absolver sumariamente o imputado, ou ainda, considerar ilegal a prisão por falta de justa causa (art. 648, I). Basta que se tenha coragem e habilidade para manejar estes institutos no momento apropriado.

Afinal, toda a ação penal – verificadas as ressalvas feitas – calcada em fato de onde não seja possível extrair relevância jurídico-penal e nem ofensa ao bem jurídico, seja com base no risco permitido, na insignificância jurídica do fato ou na adequação social, não pode ser considerada típica e, como tal, carece de justa causa. Feitas tais considerações é o parecer no sentido de que seja rejeitada a alteração ao Código Penal (Decreto-Lei nº. 2.848/1940), uma vez acreditar que a legislação em geral (Código Penal e Código de Processo Penal) já contém mecanismos suficientes para solucionar os problemas suscitados, devendo toda a problemática ser resolvida ‘caso a caso’.

É o parecer.

Walter Arnaud Mascarenhas Jr Advogado

Walter Arnaud Mascarenhas jr Mestre em Ciências Penais/Criminologia pela UCAM/RJ, membro da Comissão de Direito Penal do IAB e Advogado criminalista

Sumário: Introdução – 1. A questão do ‘mérito’ ou ‘exame de provas’ e a via estreita do habeas corpus – 2. A questão da gravidade do delito versus a legislação penal – 3. A questão do foragido versus a garantia de aplicação da lei penal – 4. A questão da (in)transcendência e da (in)ofensividade – 5. Balanço final: Estado versus Direito de Defesa.

Resumo: O instituto da prisão preventiva há muito é palco de calorosas discussões e boa parte dos operadores do Direito com alguma vivência no Processo Penal compartilham das principais idéias para a sua correta aplicação. Assim, não são novos os discursos contra a falta ou a deficiência da fundamentação no ato de sua decretação. Seus pressupostos e requisitos são bem conhecidos de todos: alunos, professores, jurisconsultos, advogados, defensores, delegados, promotores e magistrados, ninguém duvida de seus exatos contornos. Entretanto, estranhamente, na práxis processual da Justiça criminal de 1º e 2º graus de todo o país, o que se revela é uma completa desarmonia. Este trabalho visa investigar porque isso acontece; quais são os mistérios que governam esses desacertos se, aparentemente, todos concordam com suas ideias reitoras.

Palavras-chaves: Prisão preventiva – Liberdade provisória – Gravidade do delito – Habeas corpus – Garantismo penal.

Abstract: The institute of preventive custody has been for a long time a stage of heated discussions, and a good number of Attorneys, with some experience in Penal Proceeding, share the main ideas for its correct enforcement. Therefore, the speeches against the lack or insufficiency of grounds in the act of their decreeing are not new. Their assumptions and requirements are well known by all: students, professors, jurisconsults, attorneys, defense attorneys, delegates, public prosecutors and magistrates, no one question their exact contours. However, in the procedural praxis of criminal justice of 1st. and 2nd. degrees all over Brazil, what we find is a complete lack of harmony. This work aims at investigating why this happens, and which are the mysteries governing such errors, when apparently everyone agrees with its major ideas.

Key Words: Preventive Custody; Release on Own Recognizance; Offense Seriousness; Habeas Corpus; Penal Guarantism.

Área do Direito: Penal – Processo Penal

Introdução: A Constituição Federal da República do Brasil proclama em seu artigo 5º (LXVI) que: “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança. ” Daí, decorre a certeza de que a prisão preventiva é exceção, cuja a regra é a liberdade provisória.

Atualmente, embora ninguém mais duvide dos efeitos colaterais da prisão preventiva dentro do ordenamento jurídico, ainda se percebe certa reminiscência de ordem política em contestá-la, notadamente nos anais da imprensa e de certos seguimentos da sociedade civil. Muitos formadores de opinião apregoam o fortalecimento da prisão preventiva como mecanismo de Defesa Social. Para este grupo, o recrudescimento da lei e do poder de polícia são decorrências lógicas e naturais.

Neste compasso, a tensão entre os que incentivam a extensão do uso da prisão cautelar contra aqueles que a limitam é notável nos discursos políticos, nos artigos especializados, nas entrevistas com autoridades, artistas e também no âmbito acadêmico, próprio das Ciências Sociais ou Humanas.

Quem nunca se deparou após um crime bárbaro, de grande repercussão na mídia com discursos do gênero: isso aconteceu porque a lei é fraca! No Brasil, a pessoa comete um crime agora e daqui a pouco já está na rua de novo!

Da mesma forma, também é corriqueiro se ver gente falando, exatamente o contrário, tipo: o problema criminal não é um problema de lei, mas de cultura ou educação! É um absurdo ter de manter alguém preso, enquanto dura o processo em um país onde os processos se arrastam indefinidamente!

Pois bem, envoltos neste cabo de guerra os dois grupos, mesmo, possuindo relevantes aspectos positivos e negativos por estarem fundados sobre bases bem definidas e fáceis de serem identificadas, não constituem ainda o tema-foco deste trabalho.

Minha preocupação reside em uma questão bem mais nebulosa e porque não dizer, dissimulada. Refiro-me aos adeptos do segundo grupo, dos que ostentam a mesma bandeira, qual seja: a do uso comedido da prisão preventiva. Defendem a liberdade provisória como regra e proclamam o respeito ao Estado Democrático de Direito e ao Garantismo Penal, cujo grupo, muitas vezes, é o mesmo que se vê lecionando nas melhores universidades do país e se encontra no exercício do poder judicante pautando as decisões mais importantes do Brasil.

Aliás, nos cursos preparatórios para as grandes carreiras jurídicas é corriqueiro o discurso de que a prisão preventiva deve ser manejada com toda moderação possível, devendo se subordinar ao binômio necessidade/utilidade e sempre guardar correspondência aos ditames do art. 312 do Código de Processo Penal.

Entretanto, não raro se percebe uma espécie de força motriz atuar nas ‘mãos’ que redigem as manifestações do MP e as decisões judiciais de 1º e 2º graus fazendo com que muitos pleitos de revogação de prisão preventiva, embora bem formulados e calcados sobre decretos desprovidos de suporte idôneo, sejam rechaçados liminarmente.

Ora, se por trás dessas decisões estão às mesmas autoridades das salas de aula; mestres e doutores em Ciências Penais que professam a liberdade provisória como uma das manifestações mais importantes do Devido Processo Legal porque será que não é reproduzido no Judiciário o mesmo discurso das salas de aula?

Há tempos percebo que para além do conhecimento técnico jurídico existe uma ideologia camuflada, não admitida pelas autoridades constituídas. Algo presente no subconsciente coletivo das autoridades que detêm o poder de decisão. Algo que, certamente não decorre de má-fé, mas de um sentimento que não pode ser traduzido por palavras e, muito menos, pode ser escrito porque contrastaria com os grandes tratados e com as decisões pretorianas de vulto histórico e filosófico.

É a respeito desta vexata quaestio que pretendo discorrer, procurando vislumbrar um ponto de fuga para certos julgadores onde, em vez de, admitirem a presença dos requisitos para a revogação de uma prisão cautelar e conceder a liberdade, acabam ou distorcendo completamente os pedidos que lhes são feitos ou aplicando uma fundamentação mais apropriada ao ponto de vista contrário ao que se dizem defensores. Resultado: A decisão é, quase sempre, injusta ou incoerente.

E nos arredores dos tribunais? Vive-se um mundo de faz de conta, onde teoria e prática não se harmonizam, assim como lei e fato não se integram. Os advogados fazem de conta que seus clientes são ‘bonzinhos’ ou ‘inocentes’, não praticaram o crime nas circunstâncias da denúncia, enquanto os julgadores fazem de conta que essas questões ‘não têm a menor importância’ para a concessão da liberdade, pois estão relacionadas ao meritum causae. Da mesma forma, a jurisprudência faz de conta que não contempla a gravidade do crime como empecilho para a concessão de liberdade provisória porque a lei já a considera quando da fixação dos parâmetros da reprimenda penal.

Enquanto isso, os advogados fazem de conta que acreditam (…) e por aí vão tantas e tantas outras ilusões do gênero. Tentarei enfrentar só algumas delas.

1– A questão do ‘mérito’ ou ‘exame de provas’ e a ‘via estreita’ do habeas corpus.

¹ Uma certa escola moderna de psicologia define o ‘subconsciente coletivo’ como uma entidade que a investigação científica não poderia atingir diretamente, – já que o inconsciente não pode, como tal, tornar-se consciente, – mas cujas disposições latentes, abusivamente chamadas de ‘arquétipos’, podem ser inferidas de certas ‘erupções’ irracionais da alma (…) BURCKHARDT, Titus. Le Paysage dans I’Art extreme-oriental in Príncipes ET Méthodes de I’ Art. Sacré, p. 187, Dervy-Livres, Paris, 1976 (Trad. Luiz Pontual)

Qual militante da área criminal nunca viu uma Ementa que contivesse o seguinte: “A estreita via do HC não comporta exame do mérito da imputação”, ou então; “Não cabe exame de provas nos limites do HC”.

Certamente, todo mundo já viu e nem precisa impetrar HC ou chegar ao 2º grau de jurisdição para ver decisões salientando não se confundirem o mérito, atrelado ao direito substancial com questões instrumentais como são as relativas à prisão cautelar. Tal assertiva tem a sua razão de ser na própria natureza dos institutos, o Direito Penal como Ciência que aborda os crimes em espécie e o Direito Processual Penal como instrumento ou meio para dar exequibilidade a quem realizou a conduta típica.

Assim, também não resta duvida que sendo o HC uma via de cognição sumária, seu âmbito não pode abarcar uma investigação de conteúdo aprofundado, pois para isto existe o próprio Processo Penal, devidamente estruturado para acolher todas as discussões atinentes ao crime e as suas circunstâncias. O problema é que o desrespeito a noção de que o habeas corpus não deve servir para adentrar ao mérito ou analisar provas, não constitui um erro exclusivo dos impetrantes é mais comum do que se pensa, também entre os próprios julgadores.

É dizer: a Defesa quando deduz um pedido de revogação de prisão preventiva e o faz com base no mérito ou nas provas produzidas no processo é, sempre, chamada à atenção, merecendo o indeferimento do pleito acompanhado de certa lição acadêmica.

Nesse sentido:

HABEAS CORPUS – CRIMINAL – ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. – EXAME APROFUNDADO DO MÉRITO E DA PROVA NO WRIT. IMPOSSIBILIDADE – RELEV NCIA DA PALAVRA DA VÍTIMA – PRECEDENTES ORDEM DENEGADA. 1- O habeas corpus não comporta exame aprofundado da prova e do mérito da imputação. 2- A palavra da vítima é de alta relevância nos crimes de estupro e atentado violento ao pudor, cometidos na clandestinidade. (Precedentes). 3- Ordem denegada. (HC nº 66.651/SP – 2006/0204474-0)

“A ação de habeas corpus constitui remédio processual inadequado, quando ajuizada com objetivo (a) de promover a análise da prova penal, (b) de efetuar o reexame do conjunto probatório regularmente produzido, (c) de provocar a reapreciação da matéria de fato e (d) de proceder à revalorização dos elementos instrutórios coligidos no processo penal de conhecimento. ” (HC nº 69.780 – STF)

Todavia, o mesmo equívoco não é difícil de ocorrer por parte do Estado, isto é, quando o Juiz denega o pedido em sede de HC ou no âmbito do processamento da causa. Chegando a ser até frequente ver decisões indeferindo pedido de revogação de prisão preventiva, onde o fundamento utilizado se mistura com questões meritórias ou de prova. O curioso é que, muitas vezes, mesmo cônscio do equívoco, o julgador não perde o hábito professoral de opor conceituações corretas do ponto de vista técnico, mas nem por ele mesmo observadas na hipótese sub examen. É o exemplo abaixo:

“A prisão preventiva se revela como medida de natureza cautelar de caráter excepcional, só podendo ser decretada nos casos em que, havendo prova da existência do crime e indício suficiente de autoria, estiverem presentes os requisitos autorizadores, previstos no art. 312 do CPP. (…) No presente caso, narra a peça acusatória a existência de uma poderosa organização criminosa, especializada no comércio ilícito de substância entorpecente entre países da América do Sul e da Europa, assim como na ocultação dos lucros auferidos com esta atividade criminosa mediante a aquisição de postos de gasolina e investimentos na indústria petroquímica, de molde a caracterizar o crime de lavagem de dinheiro de que trata o artigo 1º, I, da lei nº 9.613/98. Relata a inicial que a droga comercializada pela organização era produzida na Colômbia, saindo de lá para o Uruguai, de onde era enviada para a Espanha – ponto de partida para a distribuição aos demais países da Europa – e para os Estados Unidos da América. O dinheiro então arrecadado retornava ao Uruguai, em vôos comerciais, onde os integrantes da quadrilha transportavam milhões de euros e dólares, ingressando, posteriormente no território nacional, mediante transferências supostamente legais, já que os denunciados tomavam o cuidado de obter autorização do BACEN para investimentos em indústrias petroquímicas, postos de gasolina e empresas cujo proprietário de fato era o denunciado XXXXXXXX, apontado pelas investigações como o chefe da organização criminosa. (…) Com efeito, a denúncia revela fortes indícios de que a acusada XXXXXXX praticava atos de administração dos postos de gasolina adquiridos pela quadrilha, figurando no estatuto social de diversas empresas de propriedade da organização criminosa, denotando efetiva atuação nas práticas de lavagem de dinheiro, tendo sido constatado vínculo de seu nome com os dados registrais de várias contas bancárias de titularidades dos postos pertencentes à organização (…) Isto é o que se constata do monitoramento dos terminais telefônicos por ela utilizados, que permite inferir sua participação nos “negócios” da quadrilha, conforme se extrai dos seguintes diálogos: (…) Como se infere dos diálogos acima transcritos, não se trata de pré-julgamento ou antecipação de cumprimento da pena, mas sim de retirar do convívio social elemento completamente inserido dentro de organização criminosa com tentáculos em vários países, altamente organizada e que necessita ser urgentemente desmantelada, preservando-se a ordem pública, já que não se tem dúvidas de que o tráfico internacional de entorpecentes é delito que dispensa maiores dissertações a respeito da grave ameaça que representa para a segurança pública e a paz social. Igualmente, não se está aqui a fundamentar decisão de 1º grau, mas sim de reconhecer que embora sucinta, a decisão monocrática não padece de qualquer vício e encontra seu respaldo nos elementos constantes dos autos, os quais evidenciam a presença dos requisitos do art. 312 do CPP, autorizadores da prisão preventiva decretada. Pelo exposto, DENEGO A ORDEM. ” (HC nº 2007.02.01.005068-3 TRF/RJ)

A decisão acima incide justamente naquilo que ela mesma faz questão de negar, isto é, de que não está fazendo um ‘pré-julgamento ou antecipação de cumprimento da pena’ ou ainda, ‘fundamentando a decisão de 1º grau’.

Ora, é claro que está fazendo tudo isso ‘sim’. Este é um caso clássico de supressão de instância ou usurpação do poder judicante de 1º grau. O Tribunal não podia se imiscuir a fazer considerações de prova, transcrevendo diálogos de interceptação telefônica e precipitando considerações acerca do modus operandi da suposta organização criminosa. Se não deve o impetrante adentrar no exame de mérito e na análise de provas quando impetra uma ordem de habeas corpus, também não deve o Estado-Juiz fundamentar suas decisões com base nestes mesmos elementos para rechaçar o pedido.

Como se não bastasse, existe, ainda, o problema do desrespeito a via de cognição sumária por onde todo HC deve ter curso. Já vi Juiz apontar a deficiência do decreto de prisão provisória e, em vez de deferir o pedido de medida liminar dar nova chance para a autoridade coatora fundamentar a necessidade da prisão preventiva. Uma providência incompatível com a natureza do HC:

“(…) é de se ver que o decreto judicial que acolheu o pedido ministerial e decretou a prisão preventiva do paciente carece da necessária fundamentação, uma vez que a mera justificação de que “presentes seus pressupostos” não preenche os requisitos legais de fundamentação específica ao caso concreto. Não bastasse isso, a decisão que a esta sucedeu, pela qual a denúncia foi recebida, também não traz nenhuma explicação dos motivos pelos quais a prisão preventiva deve ser mantida (…) De qualquer forma, considerando-se que descabe a este juízo de segunda instância proceder originalmente a adequada análise da necessidade desta prisão preventiva, apresentando os fundamentos que a sustentam, até porque se assim o fosse, suprimindo estaria um grau de jurisdição para o paciente, e ainda considerando-se que a primeira decisão adotada (a que decretou a preventiva) se deu em sede de plantão no dia 28.03.2007, o que inviabiliza muitas vezes uma escorreita e adequada análise do caso, determino que se oficie o ilustre juízo impetrado para que este, no prazo de 48h (quarenta e oito horas), não apenas preste as informações cabíveis como fundamente adequadamente a necessidade da prisão preventiva decretada” (HC nº 5051.2007.02.01.003968-7 TRF/RJ)

Eis aí uma decisão inquinada por um estrondoso error in procedendo, à medida que, subverteu a dinâmica procedimental do HC. Permitiu ao Estado errar duas vezes à custa do sacrifício do paciente, pois em lugar de desonerá-lo com o deferimento da liminar e conseqüente concessão de sua liberdade permitiu a autoridade coatora fundamentar, outra vez, a decisão de mantê-lo preso. Fato que, ao menos, não passou despercebido pela corte suprema quando tomou conhecimento do assunto:

“(…) Percebe-se claramente que a situação do paciente daquele habeas corpus foi agravada pelo despacho do juiz convocado do TRF da 2ª Região. Este, apesar de reconhecer a fragilidade do decreto prisional, diga-se de passagem, comum a todos os envolvidos determinou ao juízo de origem que fundamentasse adequadamente a decisão, quando o certo seria conceder a liminar. Em outras palavras, viabilizou-se, em habeas corpus, de forma esdrúxula, a oportunidade de reformatio in pejus (…)” (HC nº 93.803-5/RJ – STF. DJE 11.09.2008, Rel. Min. Eros Grau)

A expressão ‘esdrúxula’ acima utilizada bem retrata o quão terrível foi à decisão porque nela, expressamente, se permitiu unir duas coisas entre si distintas e inconfundíveis, a fundamentação com as informações, pois é lógico que a fundamentação há de ser, sempre, anterior a efetivação da prisão. Deve constar do decreto de prisão como sendo o elemento que justifica a restrição da liberdade alheia. Enquanto, as informações hão de vir sempre posteriores ao decreto, visam, só, esclarecer eventuais duvidas à autoridade judiciária superior a quem é endereçada. Sendo, por isso, dispensáveis. Tendo o STF há muito tempo ensinado que:

“As informações não substituem a fundamentação exigida em lei. Não há despacho, decisão ou sentença que adote fundamentação a posteriori, depois de produzir efeitos” (HC nº. 44.499, 2ª Turma, Rel. Min. Evandro Lins e Silva, DJ de 23/2/68) “O despacho que decreta a prisão preventiva, quando falho, não se considera sanado por fundamentação suplementar, depois de haver produzido efeitos” (HC nº. 56.900, 1ª Turma, Rel. Min. Rafael Mayer, DJ de 27/4/79).

Pena que passados, quase, meio século, da advertência que subjaz deste entendimento jurisprudencial, poucos sejam os Juízes que a observam.

2 – A questão da gravidade do delito versus a legislação penal

Também é cediço nos tribunais superiores que a gravidade do crime, por si só, não é o bastante para fundamentar uma prisão cautelar.

“A prisão preventiva para a garantia da ordem pública, fundada na gravidade do delito e na necessidade de acautelar o meio social, não encontra respaldo na jurisprudência deste Tribunal” (Gilmar Mendes. Min. do STF)

Embora, hoje, pacífico na doutrina e na mais alta corte de Justiça do país, muitos juízes continuam teimando em decretar prisões, movidos, unicamente pela revolta que a violência do crime induz.

“O inquérito policial demonstra que os acusados se concentraram para a prática do crime patrimonial narrado na denúncia, empregando para tal arma de fogo, situação que, por si só, autoriza a concluir pelo risco que os mesmos apresentam à sociedade se mantidos soltos”. (Proc. nº. 2009.204.001001-0/1ª Vara Criminal de Bangu – RJ)

A decisão em destaque representa exemplo típico de como não se deve fundamentar uma prisão cautelar. A fragilidade da argumentação assusta porque não agrega nenhum elemento válido. A gravidade do crime que, em tese, deve servir como aspecto para qualificar a pena ou sopesar o juízo de culpabilidade é, aqui, antecipada para o âmbito processual dando à prisão provisória uma conotação de prisão pena. Assim, o emprego de arma de fogo acabou assumindo uma feição irremediável ou implacável. A gravidade do crime operou o comprometimento, em definitivo, da conduta do individuo, impedindo-o corrigir-se depois, com uma postura conforme o devido processo legal, o que seria o mais desejável já que todo o juízo de cautelaridade deve ser estritamente instrumental e não um fim em si mesmo.

Vale para a gravidade do crime a mesma crítica feita com relação às questões meritórias ou de provas. Ou seja; se não deve a Defesa fazer alusão a aspectos relacionados à inocência do imputado ou a fragilidade dos elementos de convicção que sugerem a sua participação no crime, também não deve o Estado se referir a gravidade do crime no momento de avaliar possível decretação ou manutenção de prisão cautelar.

A esmagadora maioria dos magistrados, mesmo ciente de que a gravidade do delito não deve ser invocada em sede de HC, paradoxalmente, utiliza a maior parte de suas decisões de indeferimento liminar, com trechos das denúncias onde constam os aspectos mais graves da imputação. Por conseguinte, raríssimas são às vezes em que se vê um Juiz deixar de levar alguém a prisão quando as circunstâncias apontam para um crime bárbaro.

É necessário se levar em conta que à exceção da lei dos crimes hediondos, hoje de aplicação bastante mitigada pelo Supremo Tribunal Federal, a gravidade do crime não deve consistir em dispositivo automático para ensejar a prisão de ninguém.

Aliás, é de se duvidar da legitimidade de toda e qualquer lei que, genericamente imponha a prisão cautelar ou proíba a liberdade provisória, baseando-se na abstrata gravidade do delito. Daí, não podendo o hermeneuta a ela se apoiar como se tratasse de elemento irrefutável para justificar a restrição da liberdade das pessoas. Por isso, dissinto da jurisprudência que, vez por outra, desrespeita a prerrogativa jurídica da liberdade, de assento constitucional, superprotegendo a todo custo à ordem pública e menosprezando o interesse privado. Nesse ponto, é valiosa a lição de Aury Lopes Jr ao ensinar:

² Assim: “A gravidade do crime imputado, um dos malsinados ‘crimes hediondos’ (Lei 8.072/90), não basta à justificação da prisão preventiva, que tem natureza cautelar, no interesse do desenvolvimento e do resultado do processo, e só se legitima quando a tanto se mostrar necessária: não serve a prisão preventiva, nem a Constituição permitiria que para isso fosse utilizada, a punir sem processo, em atenção à gravidade do crime imputado, do qual, entretanto, ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (CF, art. 5º, LVII).” (RTJ 137/287, Rel. Min. Sepúlveda Pertence)   
³Bem a propósito Maria Lúcia Karam dissera: “(…) a lei não pode estabelecer prisões provisórias obrigatórias, nem pode proibir genericamente a liberdade provisória para todos os casos de acusações fundadas na alegada prática de determinado tipo de crime. ” KARAM, Maria Lúcia. Liberdade, Presunção de Inocência e Prisões Provisórias. Lúmen Juris, vol. 6. 2009, p. 42.

“A sociedade deve ser compreendida dentro da fenomenologia da coexistência, e não mais como um ente superior, de que dependem os homens que o integram. Inadmissível uma concepção antropomórfica, na qual a sociedade é concebida como um ente gigantesco, no qual os homens são meras células, que lhe devem cega obediência. Nossa atual Constituição e, antes dela, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, consagram certas limitações necessárias para a coexistência e não toleram tal submissão do homem ao ente superior, essa visão antropomórfica que corresponde a um sistema penal autoritário. Em suma, no processo penal, há que se compreender o conteúdo de sua instrumentalidade, recusar tais construções. ” (LOPES JR., Aury. Direito Processual e sua Conformidade Constitucional. Vol. I. Rio de janeiro: Lúmen Júris, 2007, p. 566/597).

Nessa linha, compartilho com o entendimento do Ministro Marco Aurélio de, considerar quanto mais grave o crime, maior a necessidade de se atentar para as garantias protetivas do imputado:

“pouco importa a gravidade da imputação, ou imputações. Até aqui, o paciente é simples acusado, muito embora com sentença contra si prolatada, mas que apenas implicou a submissão ao juiz natural, ao Tribunal do Júri. Aliás, quanto mais grave a imputação, maior deve ser o zelo na observância das franquias constitucionais” (HC/STF nº. 92.292, 1ª Turma. 12/05/09).

Tal posição acentua uma postura de vanguarda, não sujeita a um formalismo exagerado como se fosse o magistrado um positivista ortodoxo. Um legalista inveterado, de modo a ter que dar cumprimento a leis, sabidamente casuísticas ou oportunistas como a dos crimes hediondos que, de tão podada pela corte maior do país já não atende mais aos anseios de ninguém.

A toda evidência o Juiz não deve ser concebido como um Semideus, mas por julgar seus semelhantes possui uma característica singular, a de não poder errar somente pelo senso comum. Seu convencimento deve se esmerar em uma gama maior de conhecimentos, fruto de uma prudência aquilatada que a natureza do seu ofício o impõe. Deve pautar suas decisões na equidade, a partir da vivência que constrói das ciências que estuda e da sociedade que observa e faz parte.

3 – A questão do foragido versus a garantia de aplicação da lei penal

Outro problema é o da situação de foragido como motivo para a decretação da prisão preventiva ou sua manutenção ao fundamento da ‘garantia da lei penal’. Muitas vezes por preguiça de raciocínio, o julgador diante da notícia pura e simples de que o imputado se evadiu do distrito da culpa, decreta ou mantém a prisão preventiva, sem se dar ao trabalho de investigar a fundo, quais foram os motivos do individuo para se esconder da ação estatal.

A primeira crítica que se apresenta é a relacionada à própria consideração de foragido. É dizer; pode alguém que nunca foi preso ser considerado foragido? Segundo entendimento capitaneado pelo Ministro Cezar Peluso do STF, não. Para ele, só quem já foi preso e se evade do distrito da culpa para se furtar a aplicação da lei penal pode ser considerado foragido. No mais, o que há é a condição de revel ou de legítima defesa daquele que se esconde para demonstrar ser sua prisão injusta.

⁴ “a sujeição do juiz à lei já não é de facto, como no velho paradigma juspositivista, sujeição à lei somente quando válida, ou seja, coerente com a Constituição. E a validade já não é, no modelo constitucionalista-garantista, um dogma ligado à existência formal da lei, mas sua qualidade contingente ligada à coerência — mais ou menos opinável e sempre submetida à valoração do juiz — dos seus significados com a Constituição. Daí deriva que a interpretação judicial da lei é também sempre um juízo sobre a própria lei, relativamente à qual o juiz tem o dever e a responsabilidade de escolher somente os significados válidos, ou seja, compatíveis com as normas constitucionais substanciais e com os direitos fundamentais por elas estabelecidos”. (FERRAJOLI, Luigi, O direito como sistema de garantias, apud SILVA FRANCO, Alberto, O juiz e o modelo garantista, publicado no do Boletim IBCCRIM nº 56 – julho /1997

EMENTA: AÇÃO PENAL. Prisão preventiva. Decreto fundado em necessidade de garantia da ordem pública e aplicação da lei penal. Fundamentos ligados ao mero fato da revelia dos réus, tida como fuga. Inadmissibilidade. Razão que não autoriza a prisão cautelar. HC concedido. Inteligência dos arts. 5º, LVII, da CF, e 312 do CPP. Voto vencido. É ilegal o decreto de prisão preventiva que, a título de necessidade de garantia da ordem pública e de aplicação da lei penal, se baseia no só fato de o réu ser revel, tomando-o por fuga. (HC 94.759 – STF DJE 24.10.2008)

Assim, é de se ver não bastar à mera constatação objetiva da ausência do imputado no distrito da culpa, o que pode acontecer por inúmeros motivos, alguns, até escusáveis, embora, nem sempre perceptíveis à primeira vista. Daí, a prudência recomende não se denegar a ordem, sem antes fazer uma atenta investigação sobre qual a razão de ser, do endereço do imputado encontrar-se incorreto onde tramita seu processo, sob pena de, qualquer, fundamentação baseada em desaparecimento servir para justificar a sua prisão a pretexto de garantir a aplicação da lei penal:

“PREVENTIVA. NECESSIDADE DE INTIMAÇÃO DA SENTENÇA DE PRONÚNCIA. RÉU FORAGIDO. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ORDEM DENEGADA. 1. Não há constrangimento ilegal a ser sanado se o juiz, para assegurar a aplicação da lei penal, decreta a prisão preventiva do paciente, nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal. 2. No caso, o paciente encontra-se foragido há 1 ano, sem que tenha sido encontrado para ser intimado da sentença de pronúncia, inviabilizando o prosseguimento da ação penal. 3. Ordem denegada. ” (HC 94.671/SC – STJ, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima)

Para não se incorrer no risco da generalidade acima, onde não é permitido identificar como se chegou à situação de foragido. Convém, na dúvida, ou mesmo, quando não resta demonstrado pelo Estado que a fuga ocorreu para impedir a punição do crime, pois pode ter se dado só para impugnar o decreto prisional, – tido por injusto – a ordem deve ser concedida.

‘HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. EXTORSÃO. PRISÃO PREVENTIVA. FUNDAMENTAÇÃO. INIDONEIDADE. FUGA: AVALIAÇÃO, CASO A CASO. 1. Residência fora do distrito da culpa. Circunstância que não autoriza a prisão preventiva por conveniência da instrução criminal, especialmente porque o endereço do paciente é conhecido, o que viabiliza a expedição de carta precatória. 2. (…) 3. (…) 4. (…) 5. (…) 6. Fuga como justificativa da prisão cautelar para garantia da aplicação da lei penal. Necessidade de avaliá-la, caso a caso, para concluir-se se a intenção do paciente é frustrar o cumprimento da pena ou impugnar prisão que considera injusta. 7. Ausente, no caso, demonstração de que o paciente pretende subtrair-se à aplicação da lei penal. Ordem concedida.’ (HC 91.971/RJ – STF, Rel. Min. Eros Grau)

Vale reforçar; quando o imputado foge do distrito da culpa, depois de ter tomado conhecimento do decreto de prisão preventiva e o faz para refutar a prisão porque a crê injusta é razoável que não se espere dele abrir mão de sua liberdade para, só depois, discutir a pertinência da medida constritiva. Não há que se falar em dever de colaborar com a justiça, sobretudo quando o próprio conceito de justiça constitui a base da controvérsia.

“o direito à fuga, sem violência, por aquele que, de forma procedente ou não, sinta-se alcançado por ato ilícito, à margem, portanto da ordem jurídica, surge como inerente ao homem, como um direito natural” (HC 84.934)

“agride a garantia da tutela jurisdicional exigir-se que, para poder questionar a validade da ordem de sua prisão, houvesse o cidadão de submeter-se previamente à efetivação dela” (HC 84.997-1/SP – STF, rel. Min. Cezar Peluso)

E, é bom não se perder de vista que a fuga apta a legitimar um decreto de prisão preventiva é aquela evidenciada por condutas reais, concretas e, sobretudo proativas do imputado (compra de bilhete de avião, encerramento de contas bancárias, dispensa de empregados, fechamento de empresa, venda de bens, preparação de bagagens, contratação de empresa de mudanças, etc) e não aquela fundada em meras presunções ou suposições do julgador. Cabendo ainda lembrar que a fuga sem violência a pessoa, por si mesma, não é crime. Não é uma conduta típica à luz do código penal, só o auxílio à fuga o é.

4 – A questão da (in)transcendência e da (in)ofensividade

O princípio da transcendência possui dupla acepção. A primeira à necessidade do individuo ter de se expressar através ações externas, quais sejam; aquelas que ultrapassem a esfera de seu pensamento e ganhe efetividade no mundo real e a segunda, diz respeito ao que lhe é contraposto, a necessidade do Estado só poder impor restrições, punições ou penas a quem realmente praticou o fato, não podendo alcançar terceiros. Nesta última acepção, conhecida como ‘princípio da intranscendencia das medidas restritivas de direito’, tem-se a proibição da pena ultrapassar a pessoa do culpado.

De outra monta, fala-se muito no princípio da ofensividade, de larga aplicação no Direito Penal e que é imprescindível para caracterizar a criminalização primária.

⁵ GOMES, Luiz Flávio. Fuga do agente e prisão preventiva. Jus navigandi, Teresina, ano 10, n°. 942, 31 jan. 2006. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7877. Acesso em 18 jun. 2010.
⁶ A promoção ou a facilitação a fuga de pessoa legalmente presa ou submetida a medida de segurança é crime (art. 351 do CP). Já, a fuga sem violência não constitui crime, pois típica é só a conduta consistente em: evadir-se ou tentar evadir-se o preso ou individuo submetido a medida de segurança detentiva, usando de violência contra pessoa (art. 352 do CP). No entanto, constitui falta grave (art. 50, II, da LEP), mesmo porque, o preso deve manter conduta oposta aos movimentos individuais ou coletivos de fuga ou de subversão à ordem ou à disciplina (art. 39, IV, da LEP). 

Pois bem, embora ambos sejam amplamente aplicados no Direito material, vejo-os irradiando efeitos também no âmbito processual. A lógica consiste em que, de acordo com o princípio (in) transcendência, o Juiz só pode decretar a prisão preventiva do imputado com base na: 1) conveniência da instrução criminal; na 2) garantia de aplicação da lei penal ou na 3) ordem pública (econômica) se a pessoa a ser presa houver dado causa a uma experiência sensível, algo observável e por isso mesmo, considerado ameaçador ao bem jurídico dessas instituições, sem o quê haverá mera conjectura ou adivinhação, destituída de valor jurídico.

É dizer, decisões do gênero: ‘decreto a prisão preventiva porque a personalidade do sujeito indica que ele pode ameaçar testemunhas’ (conveniência da instrução criminal) ou ‘pode evadir-se do distrito da culpa’ (garantia de aplicação da lei penal) ou ainda ‘pode retomar a prática criminosa’ (acautelar o meio social ou proteger a ordem pública) são fundamentações que afrontam o princípio da (in) transcendência, conquanto não possuam base empírica idônea. A liberdade do sujeito não pode ser suprimida com base na suposição do que se imagina ter o sujeito pensado ou desejado fazer se não chegou, ao menos, tentá-lo no mundo dos fatos.

Também não pode o Juiz aplicar uma medida restritiva de direito como a ‘privação da liberdade’ só porque ao individuo é atribuído um crime praticado no bojo de uma suposta organização criminosa, onde alguém – sem ser ele – fez algo que perturbou a conveniência da instrução criminal ou atentou contra a aplicação da lei penal, ou mesmo, causou insegurança à ordem pública.

Nesse ponto, a lição de Juarez Tavares:

“Embora óbvio, não parece demasia consignar que o que se prende cautelarmente são indivíduos e não organizações, sendo certo que o fato de ser ele integrante da mencionada organização não autoriza, por si só, a conclusão que sustenta o decreto prisional.” (HC 145382/RJ, Proc. nº. 2009/0163826-9 Parecer Subprocurador Geral da República – MPF)

Afinal, a organização criminosa é tão somente uma ficção jurídica insuscetível de misturar as personalidades dos sujeitos que a integram, os quais, por mais ajustados se encontrem sobre um mesmo propósito, sempre haverá a possibilidade de um deles ter agido por desígnio autônomo. Daí, não dever a prisão ser aferida de modo conjunto senão individual.

Por outro ângulo, tem-se o ‘princípio da ofensividade ou lesividade’ que, de acordo com Nilo Batista e Zaffaroni significa que: “nenhum direito pode legitimar uma intervenção punitiva quando não medeie, pelo menos, um conflito jurídico, entendido como a afetação de um bem jurídico total ou parcialmente alheio, individual ou coletivo (…)”. Daí porque, na extensão deste raciocínio, como emanação dos direitos e garantias constitucionais, entendo que tudo que acarrete punição/prisão, ainda que não se trate de ‘pena’ propriamente dita, exige um direito ferido ou exposto a perigo. Sem isso, haverá violação ao Estado de Direito Democrático com incorporação de regra moral ou ética em seu lugar.

Destaquei ‘na extensão do raciocínio de Nilo Batista e Zaffaroni’ porque esses autores se referiram ao princípio da lesividade no âmbito, estritamente penal (material), sendo minhas as ilações seguintes. E as fiz por um motivo simples, não tolero mais como possa o Estado-Juiz presumir do nada as reações psíquicas do preso que se encontra sob sua custódia, como se possuísse ele (o julgador) alguma propriedade extraordinária para afirmar a propensão do individuo em atentar contra um dos fundamentos do art. 312 do CPP.

Embora, tanto ao fundamento da conveniência da instrução criminal como ao da garantia de aplicação da lei penal se observe um conteúdo mais restrito que o da ordem pública que, de tão vasto, quase, tudo a incomoda. É necessário, sempre se procurar concretar a ofensa ao bem jurídico.

⁷ As personalidades podem ser semelhantes, mas nunca serão iguais. Pessoas de dada série, tipo, ordem ou arquétipo podem se parecer umas com as outras, mas nunca serão idênticas. A personalidade é aquele aspecto que conhecemos, e que nos capacita a identificar esse ser, em qualquer tempo futuro, a despeito da natureza e da extensão das mudanças na sua forma, na sua mente, ou no seu status espiritual. A reencarnação à ótica do livro de Urantia. (HTTP://www.elub.com.br/artigos/reencarnacao_2.htm).   
⁸ BATISTA, Nilo. ZAFFARONI, Eugenio Raul. Direito Penal – I. Editora Revan. 2003, p. 226.
⁹Entende-se por ordem pública a situação e o estado de legalidade normal em que as autoridades exercem suas precípuas atribuições e os cidadãos as respeitam e acatam, sem constrangimento ou protesto. Ordem pública é a paz, a tranqüilidade no meio social. (TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado. Saraiva. 1992, p. 489. 

É dizer, enquanto na conveniência da instrução criminal e na garantia de aplicação da lei penal não pareça difícil perceber que o bem jurídico protegido é a regular ‘administração da justiça’ (latu sensu). No que tange a ordem pública, a tarefa se complica mais um pouco, haja vista a difusão de seu conteúdo, pois nesta o bem jurídico corresponde à estabilidade da convivência social, algo difícil de ser singularizado.

De todo modo, em respeito ao princípio da ofensividade, deve a autoridade judiciária ao deferir uma prisão cautelar, não se furtar ao trabalho de apontar aonde no mundo dos fatos, existe a efetiva ofensa ou ameaça a tais instituições (conveniência da instrução criminal; garantia de aplicação da lei penal e/ou à ordem pública). Essa providência, tanto fortalece a decisão judicial, como fortalece o Direito de Defesa do imputado, pois traz segurança jurídica para os interesses contrapostos.

5 – Balanço final: Estado versus Direito de Defesa

Face ao exposto, enfatizo a hipocrisia do discurso da prisão preventiva, título desta dissertação, porque não vejo no Brasil congruência nos métodos de sua aplicação. Acredito haver até, certo, desequilíbrio no embate forense da matéria. Lembro que quando o Ministério Público defende a segregação cautelar de alguém e o Juiz a acolhe, dificilmente a Defesa do imputado consegue discutir sua (im)pertinência sem se deparar com intensa exposição de aspectos já subsumidos no tipo penal ou atrelados à própria conduta descrita na denúncia, embora, esses aspectos nem devessem guardar importância para a solução da controvérsia.

O fato de se dizer que a prisão preventiva se justifica para garantir a eficácia do provimento final condenatório (fumus boni iuris) só é correto quando ela (a prisão) for, de fato, o único meio de garanti-la.

Nada de errado há em se ver alguém condenado que passou toda a instrução processual solto e nem, o inverso, ver alguém absolvido que passou toda a instrução processual preso, mas o pior de tudo é ver Juízes ignorando que uma possível (ou provável) condenação não deve guardar por si só relação com a restrição da liberdade de ninguém, antes da sentença. O estado de normalidade processual deve sugerir a liberdade do réu e não o contrário. A prisão nunca pode ser considerada um fato natural, senão um mal necessário.

Entretanto, a impressão que se tem é a de que, uma vez processado, a liberdade ou não do imputado dependerá da habilidade do acusador descrever o fato criminoso. Quanto mais adjetivos, aspectos ou circunstâncias negativas forem desferidos contra o acusado, mais difícil será manter a sua liberdade e, se preso, ele já tiver sido, mais demorado será retomar a sua liberdade. É como se houvesse com o oferecimento da denúncia, também a proposição de uma condenação virtual à Defesa do réu, no sentido de obrigá-la a ter de, sempre que reivindicar a liberdade de seu cliente, rever no bojo das decisões denegatórias, os mesmos fragmentos da denúncia que enfatizam as circunstâncias mais graves desferidas contra o acusado. Uma covardia!

O sistema processual é tão falho quanto sedutor ao leigo e a imprensa sensacionalista, pois por mais técnico que seja o discurso de Defesa, ela nunca consegue se afastar muito da conduta incriminada. E, mesmo não precisando e até não devendo ser a ação do imputado lembrada com eloquência no trato de uma pretensa revogação de prisão cautelar, quando o é pelo órgão ministerial ou mesmo pelo Magistrado Relator de um HC, por exemplo, costuma sensibilizar negativamente a mídia e, por conseguinte, a opinião pública. Conseqüência: a reconquista da liberdade nessas circunstancias é, quase um sortilégio.

O processualista brasileiro, infelizmente não é nada fiel a alguns princípios constitucionais fundamentais como os da não-culpabilidade ou estado de inocência. A mão frouxa de alguns magistrados na garantia de aplicação desses princípios tem contribuído para a desarmonia do tema ‘prisão preventiva’.

Os Juízes de teto não podem se deixar enganar pelas fundamentações multi-utilitaristas dos Juízes de piso. Fundamentos que servem para qualquer decisão onde se pretenda mandar alguém para cadeia ou lá deixá-lo precisam ser combatidos com veemência. Toda decisão tem de estar voltada para o caso concreto e nela, não deve haver menção as inferências tiradas pelo titular da ação penal, sob pena de afrontar o estado de inocência, antecipando um juízo meritório, impertinente na discussão processual.

Do ponto de vista técnico, aliás, é muito mais apropriado se decretar uma prisão preventiva baseando-se somente em circunstâncias processuais, – de preferência verificadas após a prática delituosa – que fazê-lo com base na própria conduta imputada já objeto de persecução penal.

Não basta escrever uma centena de livros, ser um conferencista famoso e não se fazer nada do que em suas obras defende quando, diante de si, tem um caso concreto. O ditado popular: ‘faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço’, não pode ter abrigo aqui. A bola da vez está com a Magistratura, só ao Juiz cabe intervir para colocar as coisas nos eixos, sequer ao legislador se deve esperar uma solução, mesmo porque a solução legislativa, nestes casos, só costuma engessar a operatividade do sistema.

Acredito no responsável poder discricionário do Juiz para combater a hipocrisia do discurso da prisão cautelar no Brasil. Não é possível mais fechar os olhos para a banalização da prisão preventiva, vendo-a ser aplicada sob o título de exceção, mas com contumácia regular. É preciso que cada Juiz faça uma autocrítica de sua atividade jurisdicional. Confrontar as vezes que decidiu conforme a essência de suas convicções, com outras onde decidiu para não frustrar posicionamentos em voga no âmbito de certos poderes, pode ser um bom começo para mudar este panorama.

A prisão preventiva ou a sua antítese, a liberdade provisória, não pode continuar sendo tratada nas ‘salas de aula’, de forma muito diferente do que se depreende das ‘salas de audiência’. Chega de discursos de retórica, ou melhor, chega de hipocrisia mesmo!

Bibliografia

¹⁰ Poderes porque, de certo modo e em certa medida: toda introdução de ordem acarreta algum tipo de poder e dominação. PUGLIESI, Márcio. Primeiras reflexões sobre método e um novo conceito de sujeito. Revista Brasileira de Filosofia. Editora Revista dos Tribunais, volume 232. 2009, p. 288.

BATISTA, Nilo. ZAFFARONI, Eugenio Raul. Direito Penal – I. Editora Revan. 2003.

BURCKHARDT, Titus. Le Paysage dans I’Art extreme-oriental in Príncipes ET Méthodes de I’ Art. Sacré, p. 187, Dervy-Livres, Paris, 1976 (Trad. Luiz Pontual).

FERRAJOLI, Luigi, O direito como sistema de garantias, apud SILVA FRANCO, Alberto, O juiz e o modelo garantista, publicado no do Boletim IBCCRIM nº 56 – Julho /1997.

GOMES, Luiz Flávio. Fuga do agente e prisão preventiva. Jus navigandi, Teresina, ano 10, n°. 942, 31 jan. 2006. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7877. Acesso em 18 jun. 2010.

KARAM, Maria Lúcia. Liberdade, Presunção de Inocência e Prisões Provisórias. Lumen Juris, vol. 6. 2009.

LOPES JR., Aury. Direito Processual e sua Conformidade Constitucional. Vol. I. Rio de janeiro: Lúmen Júris. 2007.

PUGLIESI, Márcio. Primeiras reflexões sobre método e um novo conceito de sujeito. Revista Brasileira de Filosofia. Editora Revista dos Tribunais, volume 232. 2009.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado. Saraiva. 1992.

A SURPREENDENTE DECISÃO DO SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR NO CASO BOLSONARO

 

 

 

Por Walter Arnaud Mascarenhas Junior*


RESUMO: O artigo retrata alguns episódios marcantes da trajetória polêmica de Jair Messias Bolsonaro ao longo de sua carreira militar no exército brasileiro. Trata-se de uma compilação de dados extraídos de uma única obra: “O cadete e o capitão”, de Luiz Maklouf Carvalho, a partir da qual foi possível conhecer como as reminiscências de um pensamento autoritário foi capaz de produzir uma decisão inusitada no Superior Tribunal Militar até hoje de difícil compreensão.
 

Muito se comenta a respeito desse julgamento, mas a bem da verdade, mesmo entre os militares essa história parece mal contada.

A começar por que Bolsonaro nunca foi um modelo de conduta no Exército, salvo como atleta que realmente se destacou no pentatlo militar, modalidade esportiva que escolhera e que, de fato, lhe rendera boa conceituação, inclusive em assentamentos.

De resto, sua carreira foi mais marcada por mal-entendidos ou transgressões de comportamento do que por algo que pudesse caracterizá-lo como merecedor de muito respeito ou admiração.

 

Sua primeira aparição no âmbito militar, responsável por fixa-lo de vez no subconsciente coletivo se deu por conta de um artigo que ele publicou na revista Veja na coluna “Ponto de Vista” em setembro de 1986, cujo título foi “O salário está baixo”.

Nesse artigo, o então capitão reclamava por melhores condições salariais para a classe militar, pois o país passava por um momento de indefinição já que José Sarney, recém empossado presidente – após morte de Tancredo Neves – vivia um ano de expectativa em torno do primeiro mandato presidencial da era democrática, após 21 anos de ditadura militar.

 

O plano cruzado tinha acabado de ser implantado e com ele o congelamento de preços fez o povo brasileiro sentir na pele o peso da inflação que chegou a alcançar um índice superior a 250% ao ano.

 

O capitão, corajoso como sempre, não titubeou ao afirmar que o desligamento de cadetes da Aman (Academia Militar das Agulhas Negras) noticiado na época, não ocorrera pelas denúncias de “consumo de drogas”, “homossexualismo” ou “falta de vocação para a carreira militar”, mas sim pelas precárias condições de subsistência, pois o dispêndio com muito esforço físico e carga horaria elevada nos serviços militares não podiam ficar circunscritos somente ao patriotismo, pois isso não enchia barriga de ninguém.

 

A tiragem da revista Veja encontrou, como de costume, excelente acolhida no público em geral, salvo pelo alto comando do Exército que entendeu aquilo como uma transgressão militar de Bolsonaro por: 

 

ter elaborado e feito publicar em revista semanal, de tiragem nacional, sem conhecimento e autorização de seus superiores, artigo em que tece comentário sobre a política de remuneração do pessoal civil e militar da União: ter abordado aspectos da política econômico-financeira do governo fora de sua esfera de atribuições e sem possuir  um nível  de conhecimento global que lhe facultasse  a correta análise; ter sido indiscreto na abordagem do assuntos de caráter oficial comprometendo a disciplina; ter censurado a política governamental; ter ferido a ética gerando clima de inquietação no âmbito da OM, da GU e da força; e por ter contribuído para prejudicar o excelente conceito da tropa Paraquedista no âmbito do Exército e da nação”. 

Em consequência, Bolsonaro foi incurso em seis artigos do Regulamento Disciplinar do Exército (RDE) que previa prisão de 15 dias, ele então ficou durante todo o período no Quartel do 8º Grupo de Artilharia de Campanha Paraquedista (GAC) em Deodoro, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, mas a partir daí tornou-se popular entre colegas de farda e familiares de militares que passaram a lhe endereçar cartas narrando suas mazelas e creditando a ele a esperança por dias melhores.

 

Um ano após, porém, Bolsonaro voltava a chamar atenção, desta feita por conta do episódio denominado “Operação Beco sem Saída” que outra vez mereceu destaque nas manchetes de jornais e da mesma revista Veja.

 

Agora a notícia era textualmente “bombástica” porquanto a edição de número 999, datada de 28 de outubro de 1987 foi intitulada assim: “Pôr bomba nos quartéis, um plano na EsAO”.

 

A notícia girava em torno de um suposto plano de atentado à bomba a unidades da Vila Militar, na Aman e no interior do Estado do Rio de Janeiro, em quartéis do Exército, o que seria feito em protesto contra o governo federal que indicava querer dar um aumento irrisório para os militares, o que se confirmado, mediante reajuste inferior a 60% do vindicado, desencadearia a explosão de tais bombas. 

 

Sendo certo que essas bombas seriam detonadas em locais estratégicos que não oferecessem perigo a pessoas, pois a ideia era só desestabilizar o ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves, tido como incompetente para reivindicar melhorias para a categoria militar. 

 

Ocorre que após compartilhado o plano com uma jornalista da Revista Veja já conhecida de Bolsonaro, Cassia Maria Rodrigues com quem vinha mantendo contado desde a matéria “O salário está baixo”, o acordo de cavalheiros de “não publicar” ou “manter sigilo” foi quebrado frente a possibilidade de algo dar errado e provocar uma tragédia, o que acabava por tornar o segredo algo perigoso e espúrio.

 

Com a publicação da matéria, rapidamente o Alto Comando do Exército promoveu a convocação de Bolsonaro para se explicar, o que fez negando inteiramente o fato e devolvendo a revista o ônus de demonstrar a veracidade do que publicara.

 

Diante disso, em pronunciamento oficial – para surpresa geral – o próprio ministro Leônidas Pires Gonçalves que a pouco tempo havia sido chamado de “incompetente” e “racista” por Bolsonaro pôs panos quentes no assunto, dizendo que se seus oficiais (Bolsonaro e Fábio Passos) haviam peremptoriamente negado a denúncia da revista como constava de seus termos de declaração, não seria ele, como autoridade máxima da instituição “Exército” que iria lhes negar credibilidade.

 

Mas, a revista Veja reagiu de forma contundente, ironizando a postura do ministro e apresentando um fac-símile com croquis atribuídos a Bolsonaro, onde continha a indicação de como as bombas seriam detonadas ao longo de um trecho da tubulação da adutora do Guandu, abastecedora de água da cidade do RJ, cujo desenho trouxe a sensação da necessidade de se fazer perícia para certificar a autoria dos manuscritos.

Daí em diante a situação tomou um rumo sem volta, pois o Comando Militar do Exército sabia que Bolsonaro continuaria dando trabalho já que ele passou a ser o paradigma de “destemor” para Suboficiais, Sargentos e Praças que depositavam nele a pessoa certa para reivindicar por melhorias para toda comunidade militar.

 

Uma Sindicância na EsAO constatou a necessidade de submetê-lo a um Conselho de Justificação, procedimento que visa apurar se o militar de carreira possui capacidade para permanecer no corpo da Ativa ou não, ocasião em que lhe é facultada a oportunidade de se justificar perante seus superiores hierárquicos. 

 

Sendo assim, Bolsonaro foi incurso no art. 2º, item I, alíneas ‘b’ e ‘c’ da Lei 5.836/1971 por ter incorrido em “conduta irregular” e ter praticado “ato que afeta a honra pessoal, o pundonor militar ou o decoro da classe”. 

 

Na sequência, o Conselho de Justificação foi formado pelo coronel de cavalaria Marcus Bechara Couto (presidente do Conselho), o tenente-coronel de infantaria Nilton Correa Lampert (interrogante e relator) e outro tenente-coronel de infantaria, Carlos José do Canto Barros (escrivão).

O processo foi deflagrado tendo por finalidade maior apurar a conduta de Bolsonaro no ano anterior (1986) quando publicou artigo na revista Veja, sem pedir autorização militar e a suposta declaração dada a repórter da revista Veja noticiando a existência de um plano que visava explodir bombas-relógio em unidades militares para desestabilizar o Comando da força. Ambas condutas “comprometedoras da disciplina e da ética militar”. 

O Conselho tomou os depoimentos pertinentes e requereu a direção da revista Veja a juntada dos croquis originais atribuídos a Bolsonaro, o que foi feito, a fim de ser submetido a perícia grafotécnica.

 

Durante a instrução processual, a repórter Cassia relatou ter sido ameaçada por Bolsonaro que através de um vidro que os separavam de um recinto para outro, teria ele simulado com as mãos, a forma de um revólver apontando para ela, o que foi interpretado como ameaça de morte.

A denúncia logo chegou ao conhecimento da imprensa que não perdeu tempo em publicar: “Ato de força – Capitão ameaça repórter que o denunciou”, este foi o título da matéria da revista Veja, 6ª edição da época.

 

Bolsonaro negou veementemente o fato e inclusive requereu uma perícia para demonstrar que através do tal vidro não era possível ela visualizar a suposta encenação e após algumas ponderações, de lado a lado, o Conselho entendeu não configurada ameaça alguma e deu prosseguimento aos trabalhos.

Também foi lembrada a “ficha de informações” de Bolsonaro, tendo merecido destaque um fato acontecido ainda em 1983, quando o coronel Carlos Alberto Pellegrino assim o tinha avaliado: “deu mostras de imaturidade ao ser atraído por empreendimento de garimpo de ouro. Necessita ser colocado em funções que exijam esforço e dedicação, a fim de reorientar sua carreira. Deu demonstrações de excessiva ambição em realizar-se financeira e economicamente”.

 

O mesmo coronel Pellegrino, após arguido pelo coronel Bechara Couto acerca da apreciação negativa que fizera sobre o Justificante e se teria algo mais a acrescentar, disse que o comportamento do então tenente, no segundo semestre de 1983 era: “reflexo de sua imaturidade e a exteriorização de ambições pessoais, baseadas em irrealidades, aspirações distanciadas do alcance daqueles que pretendem progredir na carreira pelo trabalho e dedicação”.

 

Disse ainda que o Justificante apresentava bom desempenho em funções administrativas e na preparação de exercícios, mas: “Nas rotinas de trabalho cotidiano, no exercício permanente das funções de instrutor, formador de soldados, e de comandantes, faltavam-lhe a iniciativa e a criatividade”.

 

E, por fim, encerrou sua inquirição dizendo que Bolsonaro:

 

tinha permanentemente a intenção de liderar os oficiais subalternos, no que foi sempre repelido, tanto em razão do tratamento agressivo dispensado a seus camaradas, como pela falta de lógica, racionalidade e equilíbrio na apresentação de seus argumentos”.

A defesa técnica do Justificante, nessa época representada pelo Dr. Onir de Carvalho Peres do Escritório O. C. Peres & Advogados contestou todos as alegações levantadas, tendo lembrado que o Justificante já havia sido punido com prisão de 15 dias em relação a publicação do artigo na revista Veja e que nova sanção implicaria in bis in idem, pois a aplicação de duas punições por um fato único não é permitida em Direito.

No tocante a suposta atração do Justificante pelas riquezas do garimpo, pontuou que isso não significava necessariamente imaturidade ou ambição, mas desejo de avançar a progredir e que, ademais, como estava de férias, Bolsonaro podia dispor de seu tempo como bem quisesse, até porque, como não houve “prática de comércio”, não poderia ser aplicado o Estatuto dos Militares em desfavor dele.

Bolsonaro ainda ponderou que não processou a revista Veja porque foi instaurada uma sindicância militar, a qual depois de concluída, caberia ao próprio Exército se manifestar, não, ele.

 

Afinal, “A lei militar não obriga ao militar ofendido o recurso ao judiciário”, tendo sua Defesa enfatizado: “A vida funcional do Justificante diz de sua idoneidade, valor militar, seus méritos e correta formação de caráter”.

 

Já sobre a “Operação Beco sem Saída”, o Justificante negou veementemente tudo, notadamente a autoria dos croquis.

 

Após coleta da prova oral, a controvérsia maior acabou por repousar sobre os malfadados croquis, tendo a situação ficado assim delineada: Uma primeira perícia grafotécnica foi feita, porém, por não contar com todos os documentos originais, restou inconclusiva. Sendo assim, uma segunda teve de ser realizada e foi feita pela mesma Seção de Investigações Criminais do Exército.

 

Os peritos da segunda perícia entenderam que apesar de encontrarem semelhanças entre alguns caracteres gráficos dos croquis e dos manuscritos examinados, isso não implicava em “responsabilidade gráfica”. Ou seja, mantiveram o mesmo entendimento da primeira, “inconclusiva”.

Inconformado com a indefinição, o presidente do Conselho, coronel Bechara Couto, no dia 04 de janeiro de 1988, determinou a realização de outra perícia (a terceira) que seria feita pela Polícia Federal e após colhido novo padrão gráfico dos punhos de Bolsonaro, o material foi remetido aos peritos, um do Instituto Nacional de Criminalística e outro da própria Polícia Federal.

 

O laudo foi concluído em menos de dez dias e atestou o seguinte:

 

SIM, não restam dúvidas ao ser afirmado que os manuscritos no doc. I (os croquis, ou esboços), questionado, promanaram do punho gráfico do capitão Jair Messias Bolsonaro, fornecedor do material gráfico padrão já identificado no corpo do presente laudo. Tal afirmativa é oriunda das coincidências e características encontradas no confronto efetuado, entre os documentos examinados, que permitiram a determinação de autoria. ” 

Ocorre que em razão da segunda perícia realizada pelo Exército não ter contado com o mesmo padrão gráfico, recém colhido dos punhos de Bolsonaro que serviu a Polícia Federal, se entendeu necessário proceder a uma “complementação” daquela perícia feita pela polícia técnica do Exército.

 

Portanto, os mesmos peritos que atuaram na segunda perícia do Exército (Newton Prado Veras Filho e Horácio Nelson Mendonça) e que haviam concluído – a menos de um mês – pela impossibilidade de atribuir a autoria dos croquis e manuscritos a Bolsonaro, foram novamente instados a se manifestarem. Desta feita, o laudo foi taxativo:

 

ante a comparação gráfica realizada entre os padrões gráficos coletados e a peça motivo (croquis), são os peritos acordes em que os caracteres gráficos lançados nos croquis e nas peças padrão, promanaram de um mesmo punho gráfico”.

Conclusão: o segundo laudo elaborado pelo Exército, após complementação dos mesmos peritos, teve seu resultado alterado de: inconclusivo para afirmativo, no sentido atestar que os croquis e demais manuscritos realmente profanaram dos punhos de Bolsonaro.

Diante desse quadro, o Conselho de Justificação em sessão secreta datada de 25 de janeiro de 1988, por unanimidade considerou o capitão Jair Messias Bolsonaro, “não justificado”, culpado!

 

No mérito constou: “Este Conselho não tem dúvidas em afirmar que o Justificante era informante da repórter Cassia Maria pelo menos desde o mês de outubro de 1987”. Os laudos expedidos pelo 1º BPE e pela Polícia Federal:

 

“atestam não restar duvidas ao ser afirmado que os manuscritos contidos nessa folha original promanaram do punho gráfico do capitão Jair Messias Bolsonaro.” “O resultado do laudo pericial evidencia ter sido o Justificante o autor dos croquis publicados na edição de nº 1000 da revista Veja e, por isso, ter mentido ao longo de todo o processo, o que permite seja firmada a convicção, por este Conselho que a versão apresentada pela repórter Cassia Maria, pela coerência e testemunhos apresentados, seja a mais aproximada da realidade, o que confirma a ocorrência da reunião, no dia 21 de outubro, na residência do capitão Fábio e, por conseguinte, os fatos geradores da reportagem, conforme foram apresentados.”

A decisão acima foi encaminhada ao ministro do Exército que manifestou sua inteira concordância e na forma da alínea “a”, inciso “V”, do art. 13 da Lei 5.836/1972, isto é, por haver considerado que o capitão Bolsonaro procedeu incorretamente no desempenho do cargo, remeteu os autos ao Superior Tribunal Militar.

 

No STM, porém, aconteceu uma grande, surpreendente e inusitada reviravolta. 

 

Pois bem, quinze ministros compuseram o tribunal pleno e treze compareceram à sessão de julgamento, sendo cinco civis (togados) e oito militares, da reserva.

 

Os civis: Dr. Ruy de Lima Pessoa, Dr. Antônio Carlos de Seixas Telles, Dr. Paulo César Cataldo, Dr. Aldo Fagundes e Dr. José Luiz Clerot, todos oriundos da advocacia e os militares: tenente-brigadeiro Antônio Geraldo Peixoto, almirante de esquadra Roberto Andersen Cavalcanti, general Sergio de Ary Pires, almirante Rafael de Azevedo Branco, general Almir Benjamin Chaloub, tenente-brigadeiro George Bellham da Motta, general Haroldo Erichsen da Fonseca e almirante de esquadra Luiz Leal Ferreira.

 

De todo avolumado foi acrescentado ao processo, as denominadas “folhas de alterações” onde constava a exclusão de Bolsonaro da EsAO para responder ao Conselho de Justificação e seu histórico durante o segundo semestre de 1987, neste, constando conceito excelente para todas provas físicas e para um teste de tiro, assim como, a informação de que concluíra o curso da EsAO com conceito “bom” e nota final 7,68, terminando aquele ano letivo na 28ª posição de uma turma de 49 alunos.

 

Bolsonaro reclamou a corte do STM, o fato de ter sido impedido de receber seu diploma na cerimônia oficial de conclusão de curso e de participar da colação de grau, assim como manifestou indignação contra um Editorial do Exército que tinha por título “A verdade: Um símbolo da honra militar” onde fazia referência a ele a Fabio Passos afirmando que ambos: “faltaram com a verdade e macularam a dignidade militar” sendo que ao final, constava: “Se assim forem julgados pelo STM” ao que ele considerou tratar-se de um verdadeiro “pré-julgamento” expresso de forma dura e ofensiva contra si.

 

Contestou ponto a ponto de todo o libelo-acusatório, repetindo de um modo geral o que já havia dito quando do primeiro Conselho de Justificação. 

Todavia, o que verdadeiramente fez toda diferença, nesse julgamento, foi por incrível que pareça a sua “autodefesa, onde curiosamente promoveu uma releitura de toda prova pericial e, ao final, parece que acabou confundindo a corte.

 

A começar se apresentou ‘sem advogado’, em que pese durante toda a fase anterior tenha sido assistido até por mais de um escritório de advocacia, porém logo de início fez constar na folha 2 de seu arrazoado: “Eis-me, pois, diante do STM, para defender a minha honra injustamente vilipendiada. Apresento-me, nesta oportunidade, desacompanhado de advogado, que, além de oneroso para minhas condições financeiras, entendo desnecessário comprovar-me juridicamente honrado. Sou, de fato, honrado, por todos atos que pratiquei, como soldado e cidadão. Para enuncia-los, ninguém melhor do que eu próprio”.

 

E assim, na sequência, deu início a tese mais curiosa de que se podia imaginar. Ao longo das 26 páginas de sua “defesa escrita”, desenvolveu o seguinte raciocínio: Que teriam sido produzidas quatro perícias, em vez de três. 1. Uma feita pelo Exército (inconclusiva), 2. Uma segunda, novamente pelo Exército, também inconclusiva, 3. Uma terceira pela polícia federal atestando sua autoria aos croquis e 4. Uma quarta retificando o resultado do segundo laudo para também reconhecer sua autoria.

 

Dito isso destacou: “Da análise cronológica dos autos, vemos os dois primeiros, ambos fornecidos pela polícia do Exército que deixam de apontar sobre punhos gráficos” e na sequência, Bolsonaro arremata:

 

Curiosamente, o quarto laudo, o último na ordem cronológica, fornecido pela Polícia do Exército, assinado pelos mesmos peritos do segundo laudo e um perito do primeiro (Newton Prado Veras Filho) é desfavorável ao justificante, usando inclusive a mesma terminologia da Polícia Federal, ‘PROMANARAM’ de um mesmo punho gráfico. A mentira que se quer forjar sobre este justificante desmorona-se nas perícias contraditórias, ora mencionadas”.

Ou seja, Bolsonaro transformou o que constituía uma “complementação” ao segundo laudo em um quarto laudo autônomo, de modo que em vez de 2 X 0 (dois laudos atestando sua autoria sobre os croquis versus um inconclusivo que nada revela), ele concebeu 2 X 2 (dois laudos atestando sua autoria versus dois contrários a ele).

 

Melhor explicando, o capitão que de ‘bobo’ não tem nada, desenvolveu uma tese interessante, de aparência tola em uma verdadeira ‘armadilha’, mudou o sentido da expressão “inconclusivo” que quer dizer: ‘ilógico’ ou ‘o que não demonstra nem prova nada’ em algo a favor dele para assim chegar a um surpreendente ‘empate’.

 

Nessa perspectiva, Bolsonaro dá a entender que o quarto laudo (na verdade, segundo complementado) seria contraditório aos dois primeiros, o que não é verdade, visto que o segundo só foi considerado inconclusivo no início, pois depois, após ele fornecer novos padrões gráficos, passou a ser “conclusivo”, no sentido de apontar que os croquis partiram de seus punhos.  

 

Foi o que ele quis dizer quando asseverou:

 

Tais exames, pelas contradições que encerram, nada servem como matéria de prova. Ademais, é profundamente suspeito o quarto laudo, cujos peritos repetem os termos do último laudo da Polícia federal e desmentem os pareceres de ambos no primeiro e segundo laudos. Não é demais repetir que os croquis examinados nada tem a ver com o fantasioso “Plano Terrorista”. 

Na sequência o Ministério Público Militar apresentou parecer escrito onde desprezou a primeira perícia por inconclusiva e tampouco considerou a segunda antes de ser complementada já que ela acabou sendo superada.

 

Em síntese sustentou que:

 

o Justificante não conseguiu se justificar”, “os autos retratam conduta que, inquestionavelmente, o coloca na inconfortável posição de incompatibilidade para o oficialato”, pois “o plano codinominado Beco sem Saída objetivando explodir bombas em unidades da Vila Militar, da Academia Militar das Agulhas Negras em Recife, no interior do Rio de Janeiro e em vários quarteis, sob protesto de chamar a atenção para os baixos  vencimentos dos militares, se verídico, ou quixotesco, foi realmente descrito pelo justificante à então repórter da revista Veja, Cássia Maria”.

Ao fim, o Ministério Público Militar recomendou ao Egrégio Colegiado Castrense “considerasse o capitão Jair Messias Bolsonaro culpado, declarando a sua incompatibilidade com o oficialato e consequente perda do posto e da patente, tudo nos termos do art. 16, inciso I, da lei 5.836/72. ” 

Embora Bolsonaro houvesse dito encontrar-se sem advogado, a Dra. Elizabeth Diniz Martins Souto se apresentou ao plenário da corte no dia 16 de junho de 1988 como sua patrona e, nessa condição, fez sustentação oral por aproximadamente 32 minutos.

 

Em sua explanação, ela citou algumas contradições da revista Veja, reclamou do tratamento dispensado a Bolsonaro no dia de sua formatura na EsAO quando foi impedido de permanecer no recinto e no que tange a prova técnica, fez referência a dois laudos como “inconclusivos” e disse que a última perícia do Exército mudou o resultado de um desses dois, insinuando que foi elaborado um “laudo encomendado” já que o último praticamente repetia as mesmas palavras do laudo da PF, desfavorável ao seu cliente.

 

Encerrou, pedindo ao Superior Tribunal Militar que considerasse o capitão Bolsonaro “justificado e não culpado” “porque não restou provado o libelo acusatório”.

Os ministros julgadores então começaram a proferir seus votos. Todos eles abordaram Bolsonaro por distintos critérios, perspectivas e cada qual com a sua ‘visão de mundo’ sopesou os fatos dando maior relevo a um ou outro fator, porém, aqui nos limitaremos a lembrar os ‘pontos de vista’ que foram mais recorrentes ou que mereceram maior destaque.

 

O ministro-relator Sergio Ary Pires foi o primeiro a votar e concluiu sua explanação dizendo: “(…) considerando as profundas contradições existentes nos quatro exames grafotécnicos constantes dos autos, dos quais dois não apontam a autoria dos croquis, enquanto outros dois atribuem-na ao justificante (…) este Tribunal não encontrou, nos autos, elementos de convicção bastantes para imputar ao Justificante, sem sombra de dúvidas a autoria dos citados croquis. IN DUBIO PRO REO”.

 

O ministro-relator, portanto, votou em favor de Bolsonaro (1 X 0).

 

O ministro-revisor, Aldo da Silva Fagundes começou fazendo um breve “registro de caráter psicológico” do Justificante, o qual desenvolveu a partir de três indagações que fez e ele mesmo sugeriu resposta. 

 

Seria ele um insano? Há certas infantilidades, certas atitudes que surpreendem, mas é muito difícil concluir pela insanidade mental deste homem”. “Seria um homem radical, interessado em subverter a ordem pública, um terrorista, enfim?” Contraria tudo que é lógica, tudo que é uma análise sensata”. E, continuou: “Eu sempre ouvi dizer que o general Newton Cruz é um homem de direita, um homem radical – e este capitão (Bolsonaro) tem pelo general uma enorme admiração. Mas este relacionamento, até fraterno, será suficiente para dizer que este jovem é um terrorista, comprometido com o tumulto da vida institucional do país? Não tenho como chegar a esta conclusão”.

Para o ministro-revisor, todo o acontecido “marcou o comportamento de Bolsonaro” e, “por um momento até alterou sua normalidade psíquica, fazendo-o pensar que era o verdadeiro líder do Exército brasileiro”, mas “foi um episódio, vai ser superado pelo tempo, e ele pode perfeitamente continuar sendo um oficial útil para o Exército brasileiro, porque é um homem honrado, um homem digno, não há nenhuma acusação moral grave a respeito da conduta dele”. 

 

O ministro-revisor seguiu o voto do relator a favor de Bolsonaro (2 X 0).

 

O ministro Haroldo Erichsen da Fonseca foi o primeiro a abrir divergência, para ele: “Não cabe ao capitão, na ponta da linha, tomar para si os problemas do alto escalão”, “os dois capitães (Fabio Passos e Bolsonaro) estavam querendo quebrar a hierarquia do Exército”, afirmou!

Quanto a prova técnica disse que da análise dos “três laudos grafotécnicos”, principalmente o da polícia federal, o “órgão de maior capacidade” restou claro “que o croqui promanou do nosso capitão Bolsonaro”, tendo por fim salientado: “O plano ‘Sem Saída’ não era para ser executado. Uma idiotice, um engodo, só jogou o problema” e finalizou: “Bolsonaro quer se projetar ainda mais como líder do Exército e o líder do Exército é o ministro. Não pode se contrapor ao ministro. Está quebrada a hierarquia nesse sentido”.

 

O ministro Haroldo Erichsen da Fonseca assim votou contra Bolsonaro (2 X 1).

 

O ministro José Luiz Clerot começou lembrando o padre Antônio Vieira “Quem julga com o entendimento, pode julgar bem, e pode julgar mal, quem julga com a vontade, nunca pode julgar bem. Nunca julguei com paixão.” Disse isso para cravar que se recusava supor que a revista Veja fosse se prestar, irresponsavelmente a publicar uma matéria desse jaez.

 

Sobre a questão técnica, a principal da discussão, disse: “Ainda que se queira impugnar os laudos existentes não se pode negar que há pelo menos um fumus boni Iuri, ou fumaça do bom direito para afirmar que as letras e aqueles croquis são do punho de Bolsonaro” (…) “não quero lançar suspeitas sobre os laudos feitos pela área militar – porque há um certo espirt de corps que deve ter funcionado, – mas não funcionou na Polícia Federal.”

E com o propósito de contrapor o relator que aplicou o princípio in dubio pro reo a favor de Bolsonaro, lembrou do art. 326 do CPPM que estabelece que o juiz não ficará adstrito ao laudo, podendo aceitá-lo ou rejeitá-lo, no todo ou em parte para ao final dizer:

 

Ele pode até abandoná-los, mas antes de abandoná-los tem primeiro que se render às evidencias, sob pena de não estar atento à prova dos autos. Se existem laudos discordantes, e vem um terceiro do Instituto de criminalística, mais especializado, afirmando ou dissipando as dúvidas existentes, não há por que não se acatar este terceiro e último laudo. Essa é a realidade.”

Já caminhando para conclusão, este ministro acrescentou:

 

O problema da disciplina nas Forças Armadas, principalmente nessa faixa de capitão está tão ruim quanto em 1964” (…) “Está gravíssimo” (…) “São atraídos como cordeiros por esses dois loucos (Bolsonaro e Fábio Passos)” (…) “Nos últimos decênios é o fato mais grave, de repercussão negativa maior, de maior conteúdo antiético, de maior conteúdo violador das normas, da disciplina e da hierarquia que já se passou por esse país no âmbito das Forças Armadas. Nunca, nem antes de 1964, se me falha a memória, um capitão teve coragem de afrontar um chefe militar como se afrontou”.

Com tal manifestação, evidentemente o ministro José Luiz Clerot votou contra Bolsonaro (2 X 2).

 

O ministro George Belham da Motta, diferentemente dos demais não se debruçou circunstanciadamente sobre os fatos, fez considerações superficiais e genéricas sobre todo o apanhado, destacando que Bolsonaro errou ao publicar o artigo “O Salário está baixo”, mas ao traçar um paralelo com o ministro Leônidas Pires Gonçalves a quem antes fizera uma piada dizendo que umas das virtudes dele foi unir o Exército, mas “contra ele próprio”, disse que o ministro do Exército errou pior e o fez quando ratificou o parecer final do Conselho de Justificação, avalizando a declaração de uma repórter da revista Veja.  

 

Para este ministro, a revista Veja “não vale o que come” e entre um e outro caso contado na sessão, sintetizou o que pensava, dizendo: “Essa revista visa dar furo de reportagem e jogar uns contra os outros. Essa revista não é digna de respeito” e dessa forma deixou clara sua posição.

O ministro George Belham da Motta votou a favor de Bolsonaro (3 X 2).  

 

O ministro Roberto Andersen Cavalcanti, no mesmo diapasão do voto de seu antecessor, após se dizer estarrecido e muto preocupado com o que estava acontecendo, disse que: “depois da apologia feita pelo ministro Clerot quanto à integridade absoluta das informações da revista Veja, de que seus reportes são verdadeiros vestais da verdade” só lhe restaria dizer: “Deus salve o Brasil” e desse modo, sem adentrar na questão dos croquis e/ou dos manuscritos atribuídos a Bolsonaro, mas seguindo a mesma linha de aversão a revista Veja deixou também evidente seu voto.

O ministro Roberto Andersen Cavalcanti votou a favor de Bolsonaro (4 X 2).

 

O ministro Rafael de Azevedo Branco começou reconhecendo que por quatro ou cinco vezes tendeu ir para um lado e depois voltou, cujo movimento pendular se deu porque sempre esteve preocupado em achar a “verdadeira verdade” já que havia indícios contra ambas as partes e quanto ao laudo grafotécnico disse: “É fraco, porque pegou apenas um ou outro caractere”. Enfim, mostrou-se inseguro e na dúvida preferiu manter cautela.

O ministro Rafael de Azevedo Cavalcanti votou a favor de Bolsonaro (5 X 2).

 

Veio, então, o ministro Antônio Carlos de Seixas Telles, ex-escrevente juramentado e juiz militar de carreira, procurou se ater mais as perícias, porém estranhamente não disse nada sobre o “laudo de complementação” da polícia federal que modificou o segundo laudo do Exército, mas foi contundente em criticar o laudo do Instituto de Criminalística por não ter identificado as “coincidências” entre o padrão gráfico e os croquis, o que seria elementar. Sendo assim, declarou “a perícia não me convenceu” e empregando o contido no art. 326 do CTM que dispõe não estar o julgador adstrito ao laudo, entendeu que os laudos não lhe davam condições suficientes para convencê-lo da prática de que se pretendia comprovar.

O ministro Antônio Carlos de Seixas Telles votou a favor de Bolsonaro (6 X 2).

 

O ministro Alzir Benjamin Chaloub fez questão de exaltar o voto do ministro relator ao qual considerou “brilhantíssimo” e nessa toada, fez alusões genéricas a “acusações não comprovadas”, “justificativas mal alicerçadas” e não poupou críticas a repórter da Veja, afirmando ter ela mentido muito e, ao final, não demonstrou o menor pudor ao dizer que:

 

repórter não é flor que se cheire” e que “Ele (Bolsonaro) tinha contatos com a criatura que é pouco recomendável, essa é que é a verdade e perigosa, uma coisa de você criar uma cascavel dentro de casa. Você dominá-la, controla-la e tudo, mas está arriscado a qualquer momento te dar um bote” e nesse tom concluiu o voto.

O ministro Alzir Benjamin Chaloub, é claro, votou a favor de Bolsonaro (7 X 2).

 

O ministro Paulo Cesar Cataldo foi objetivo:

 

não temos nenhuma prova quanto ao fato principal”. “Temos o laudo da polícia federal, ainda assim é indício”. “O fato de ser do punho dele não quer dizer necessariamente que tenha sido feito naquele apartamento (do capitão Fábio Passos) afirmou”. Fez referências a “indícios e contraindícios” e terminou fazendo uma previsão: “este rapaz vai se sair muito mal no Exército”, mas como havia “um mínimo de dúvida” não podia votar contra.

O ministro Paulo Cesar Cataldo assim votou a favor de Bolsonaro (8 X 2).

 

Outros três ministros, cujo teor dos votos não se tem conhecimento, mas só o resultado foram: Rui de Lima Pessoa que votou a favor de Bolsonaro (9 X 2) e de Luiz Leal Ferreira e Antônio Geraldo Peixoto (presidente da sessão) que votaram contra (9 x 4).

 

 Com o resultado proclamado, o Acordão foi lavrado com a seguinte redação:

 

Capitão do Exército acusado de conduta irregular e prática de atos atentatórios à honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe. Carência de prova testemunhal a confirmar as acusações. Contradições em quatro exames grafotécnicos compromete o valor da prova pericial, impondo a rejeição dos mesmos à luz do art. 325 do CPPM. Rejeitadas as nulidades arguidas pela defesa por intempestividade e por inobservância de formalidade de seu exclusivo interesse. Improcedentes as acusações, inclusive as de infringência de preceitos da ética e do dever militar, declara-se o oficial ‘NÃO CULPADO’. Decisão por maioria.”

A revista Veja publicou o resultado do julgamento, com a seguinte chamada: “Palavra final – STM absolve capitães da Beco sem Saída” e segundo o autor do livro: “O cadete e o capitão – A vida de Jair Bolsonaro no quartel” (ed. todavia), de onde foram tiradas todas as informações deste artigo, a revista Veja ainda errou quando comentando a decisão se referiu somente ao “laudo inconclusivo” do Exército e ao “outro da Polícia Federal”, o que para ele, Luiz Maklouf Carvalho (o autor do livro) indicava certo desconhecimento dos fatos, talvez, provocado pelo excesso de prudência em procurar fazer uma “cobertura à distância para não parecer que estava fazendo campanha contra o capitão Bolsonaro”.

Conta a lenda que o capitão não ficou muito à vontade com a “vitória”, não! Amigos o teriam alertado que o ministro do Exército quando soube do resultado ficou “furioso” e que Bolsonaro já se sentindo perseguido por ter ficado na “geladeira” e “sem serviço” desde a fase de sindicância quando foi transferido da Vila Militar para trabalhar no QG do Palácio Duque de Caxias, temendo uma represália maior do alto comando, preferiu largar o Exército para tentar a sorte na política.

 

Outro boato diz que uma decisão o expulsando do Exército poderia ocasionar uma espécie de “insurreição” por parte de praças, sargentos e suboficiais, daí porque o STM teria preferido não o condenar desde que o capitão se afastasse da corporação de uma vez por todas.

De qualquer forma, esse julgamento deixa algumas incógnitas e a maior delas, sem dúvida é a levantada por Maklouf e diz respeito a aberração hermenêutica referente a interpretação dada as perícias.

 

É claro que a “quarta perícia” na cronologia das vezes que se precisou da intervenção de peritos, a rigor, não era uma perícia propriamente dita (autônoma), ela não passava de uma complementação à segunda que quando foi feita não havia contado com o mesmo padrão gráfico que serviu ao corpo técnico da polícia federal, daí a necessidade de complementação.

 

Nesse caso, se foi uma complementação é lógico que o primeiro resultado da segunda perícia, tido por “inconclusivo” foi alterado para “afirmativo”, afirmativo para os dois quesitos do laudo pericial que visava saber se: 1. O padrão gráfico contido no documento nº 1 é bastante capaz de permitir a comparação com a grafia de outros documentos, manuscritos do próprio punho do Cap. Art. Jair Messias Bolsonaro e se 2. O tipo de grafia, talhe e letra, inclinações e variantes, coincidem com o mesmo punho

 

Ora é claro que só a primeira perícia foi inconclusiva, pois a segunda e a terceira foram induvidosas em atestar a autoria dos croquis e dos manuscritos a Bolsonaro.

 

A pergunta que não quer calar é a seguinte: como acreditar que o Superior Tribunal Militar tenha sido leviano ao ponto de cair na armadilha do capitão Bolsonaro, primeiramente por considerar a complementação à perícia como uma quarta independente e, depois, por emprestar a expressão “inconclusiva”, um raciocínio que contrasta com a própria etimologia da palavra, pois o que é inconclusivo não pode levar a conclusão alguma, mas no julgamento levou a ideia de algo a favor do réu? 

 

Sim, porque se inconclusivo fosse mesmo inconclusivo, duas assertivas inconclusivas não chegariam a somar nada, mas para empatar com as duas perícias indicativas de culpa, elas assumiram a conotação de benéficas ao réu para daí abrigar o princípio in dubio pro reo da forma mais inusitada de que se tem notícia.

 

Não se pode aplicar este princípio em situações heterogêneas, se a hipótese fosse de se decidir sobre vários laudos, todos inconclusivos, o princípio poderia ser aplicado tranquilamente, assim como também seria o caso se, por exemplo, houvessem dois laudos antagônicos entre si, um afirmando não haver dúvida de que os desenhos resultaram de determinado punho contra outro atestando não haver dúvida que não resultaram do mesmo punho.

 

Porém, a hipótese não comportava dúvida razoável alguma e por isso, o princípio in dubio pro reo foi aplicado de forma flagrantemente tendenciosa.

E nem se cogita de imputar má-fé a Bolsonaro porque o réu pode se calar e pode inclusive mentir, tudo isso faz parte do lastro da autodefesa, o que se questiona é como uma corte superior de justiça comprou uma tese dessa.

 

Diz a lei que o juiz não está adstrito ao laudo, é verdade, ele pode desprezá-lo no todo ou em parte, mas tal não significa que possa fazer isso por mero capricho, sem fundamentar ou apontar uma razão plausível para negar-lhe credibilidade, pois se assim o fizer, estará julgando contra a evidência dos autos.

 

Foi o que aconteceu, não se observa dos votos proferidos, nenhuma fundamentação razoável para deixar de adotar as evidências extraídas do conjunto probatório, produzido pelas perícias que apontavam para certificação de autoria ao capitão Bolsonaro, como bem ressaltara o ministro José Luiz Clerot, único que julgou “sem paixão” e com olhos totalmente voltados para o processo, sem tergiversar.

Poder-se-ia até dizer que os laudos embora capazes de apontar que os croquis foram feitos por Bolsonaro, não teriam o condão de demonstrar que foram confeccionados no dia da reunião realizada na casa do capitão Fabio Passos e que por isso, não seriam capazes de sozinhos indicar que faziam parte do plano terrorista, tese até levantada por alguns ministros, mas que não foi a vencedora.

 

O fato é que não houve “contradições nos quatro exames” de modo a “comprometer o valor da prova pericial” conforme lamentavelmente acabou constando do Acórdão, isso é uma inverdade! Simplesmente porque só houve três exames grafotécnicos, um inconclusivo que poderia ser até desprezado (o primeiro) por que foi feito sobre cópias xerográficas e dois assertivos da autoria de Bolsonaro (um realizado pela polícia técnica do Exército e outro pela Polícia Federal) 

 

Outra situação surpreendente, quase inacreditável, não fosse o farto material coletado por Maklouf que inclui documentos e áudios extraídos do processo é que os julgadores não podiam julgar o caso movidos só por suas impressões pessoais acerca da revista Veja e/ou da repórter, como efetivamente fizeram.

 

Há trechos onde os ministros externam – sem o menor constrangimento – suas antipatias, tanto em relação a revista, como em relação a pessoa da repórter, Cassia Maria Rodrigues que, embora não fizessem parte do processo como réus, foram condenados como tais. Um absurdo que bem retrata como aquelas “sessões secretas” do STM podia formar convicção sobre pessoas ou situações, sem se aterem as provas do processo, verdadeira reminiscência do período ditatorial de triste lembrança.

 

E, assim, conforme consignara a revista Veja em sua memorável edição nº 1033 de 22 de junho de 1988: “A sentença judicial do STM encerra o caso que a partir de agora passa a fazer parte da história da corte, da história de Veja e da biografia do capitão, bem como de seu prontuário”.

Esperamos que a história desse julgamento sirva também de paradigma para demonstrar que sem um verdadeiro Estado Democrático de Direito onde não haja espaço para “sessões secretas”, nem desrespeito aos direitos e garantias individuais é impossível se realizar o ideal de JUSTIÇA!

Rio, 27 de abril de 2021.

   

Mini currículo:

Advogado criminalista, mestre em Ciências Criminais e Criminologia pela UCAM-RJ,

 Diplomado pela Escola Superior de Guerra no CAEPE – Curso de Altos Estudos e Política Estratégica, 

Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – Comissão de Direito Penal

www.arnaudadvocacia.com.br

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O 'reconhecimento de pessoas' no combalido sistema de justiça criminal brasileiro

 

 

 

 

Essa brevíssima abordagem não possui a pretensão de discorrer a fundo sobre o tema ‘reconhecimento de pessoas’. A proposta aqui é só chamar a atenção sobre um único ponto ou aspecto que, embora seja tido como de somenos importância, vem demonstrando as mazelas de nosso sistema de justiça criminal, ainda operando no fluxo de uma legislação caótica e no rastro de uma jurisprudência preguiçosa. Situação que tem servido à marginalidade de prato cheio para fazer de ingênuos ou tolos, os operadores públicos do processo brasileiro.


Portanto, longe de desenvolver alguma tese ou artigo científico sobre o tema, cuja literatura jurídica já possui convincentes trabalhos, esta reflexão só visa alertar quem atua no ramo a refletir a respeito. Refiro-me precisamente aos delegados de polícia, aos promotores e aos juízes.

Trata-se, pois, de analisar como a comunidade jurídica vem tratando do RECONHECIMENTO DE PESSOAS que nada mais visa, senão, precisar com exatidão a pessoa contra a qual se realizam determinadas imputações. Fenomenicamente corresponde a uma sensação de identidade entre uma percepção presente e uma percepção passada, na qual se reconhece uma pessoa, quando, vendo-a é possível resgatar sua imagem gravada no seu subconsciente[1].

 

Procedimento comum, tanto nas delegacias de polícia como nas varas criminais, onde tanto pode ocorrer por meio de ‘fotografias’ ou na forma ‘presencial’, mas sempre envolto a um desleixo tal que só aproveita à fraude processual, cada vez mais eficiente em mandar para o sistema penal, pessoas ‘inocentes’.


O artigo 226 do código de processo penal estabelece toda uma forma de observância obrigatória[2].

 

Daí se concluindo que somente o reconhecimento visual e presencial possui prescrição legal. Sua natureza jurídica é de meio de prova, na medida em que visa identificar uma pessoa sobre a qual repousa determinada suspeita de prática criminosa. Sua validade está condicionada a observância do devido processo legal em toda sua plenitude.

 

Logo, tudo mais que se preste a identificação pessoal onde não haja um processo de suspeição em curso e não seja feito perante um Juiz de Direito, sob o pálio do contraditório, não pode ser considerado meio de prova, mas mero ato de identificação.

 

Surgindo aqui a primeira ilação importante: Identificação fotográfica é aquela feita a partir de fotografias aleatórias entregues ao sujeito para apontar o possível autor de um crime. Possui a natureza jurídica de mero meio de investigação porque não induz nenhum outro indício de autoria anterior ou concomitante. Já o reconhecimento fotográfico é o ato pelo qual se submete ao sujeito um álbum com fotografias selecionadas de pessoas já suspeitas de ser o autor do crime. Possui a natureza jurídica de meio de prova precário porque embora pressuponha uma suspeição em curso, o ato de apontamento se dá fora do alcance de um juiz de Direito e sem o contraditório[3].

 

Ocorre que na prática forense nada do que se disse acima transcorre de maneira muito clara. Basta dizer que no âmbito policial, o acervo fotográfico surge sem nenhuma explicação plausível. Nunca se sabe ao certo sua procedência: se tais fotografias foram extraviadas ou foram trazidas à delegacia policial a partir de ocorrências policiais anteriores; se foram colhidas da própria investigação em curso ou se foram fruto de algum órgão de identificação civil onde já continha a imagem da pessoa.Portanto, tendo em vista que o reconhecimento fotográfico não possui previsão legal e, como dito acima, é considerado meio de prova precário, ele, sozinho, jamais deveria ser admitido como elemento de convicção para fundamentar uma prisão cautelar, no máximo, poderia legitimar o processamento do indivíduo, mas nunca comprometer sua liberdade.

 

Infelizmente, em tempos onde vige nas grandes cidades brasileiras um poder paralelo exercido por milicianos e/ou maus policiais desprovidos de qualquer escrúpulo, todo e qualquer reconhecimento de pessoas para ser válido – enquanto meio de prova a levar alguém à cadeia ou à condenação – necessita ser realizado na presença de um Juiz de Direito com todas as garantias constitucionais.


Assim é que, em se tratando de reconhecimento presencial faz-se necessário que o juiz esteja atento para que ‘item por item’ do art. 226 do CPP seja rigorosamente observado, sob pena de frustrar seu objetivo, pois o procedimento é irrepetível, na medida em que se afigura impossível reconstituir na cabeça do reconhecedor as condições de ineditismo existentes na primeira oportunidade. Uma segunda vez restará sempre prejudicada pelas impressões gravadas na memória da pessoa instada a reconhecer.

 

No entanto, mesmo nas Varas Criminais onde seria improvável se acreditar que alguma formalidade legal pudesse ser desatendida, a vivência nas salas de audiência demonstra uma realidade assombrosa, onde pouquíssimas vezes se veem juízes preocupados em atender à lei ipse literis.

Na maioria esmagadora das vezes é possível identificar, pelo menos, dois grupos: o daqueles que utilizam o artigo 226 do CPP como mero parâmetro procedimental, mas não como um modelo rígido a ser seguido e o grupo daqueles que sequer utilizam o rito estabelecido no artigo 226 do CPP.

 

Para o primeiro grupo, não raro o indivíduo que deve fazer o reconhecimento é mal orientado a descrever a pessoa a ser reconhecida antes que lhe seja posta à sua frente (inciso I); noutras, sequer a pessoa a ser reconhecida guarda alguma semelhança com as que figuram ao seu lado (inciso II); e por fim, quando o documento é lavrado, tampouco ele costuma retratar com exatidão, tudo que foi realizado (inciso IV).
Já para o segundo grupo que nem considera o ato de apontamento ou identificação de pessoa, parte integrante de um reconhecimento propriamente dito, tudo, fica circunscrito ao regime de prova testemunhal ou fica subentendido como prova atípica e, nesse caso, é admitido com base nos princípios da liberdade probatória e da livre apreciação da prova.

 

Todavia, como o reconhecimento presencial costuma ocorrer no bojo de uma instrução processual formal que conta com todos os atores processuais: juiz, promotor, advogado e réu, eventual vício ocorrido nessa fase, pelo menos, pode ser remediado por protesto da defesa técnica ou prequestionado para viabilizar possível recurso.

 

O pior, porém, acontece quando a arbitrariedade se dá longe dos olhos desses personagens. É o que acontece na fase pré-processual, onde basta existir um policial desonesto ou mau-caráter para pôr em descrédito todo o sistema de justiça criminal.


A fraude acontece justamente onde falta regulamentação legal. No ‘reconhecimento fotográfico’ que, como já se disse, não deveria ostentar muito prestigio, notadamente em função da precariedade de suas garantias.

 

É dizer, aqui, a facilidade para levar a erro as autoridades públicas responsáveis pela higidez do sistema de justiça criminal é muito grande.
E nem se diga que é fantasiosa a hipótese de alguém pretender ludibriar a justiça para ver preso, processado e até condenado, alguém que sabe não ser o autor do crime.

 

Afinal, muitas são as razões que justificam um enredo desses e, embora se ajuste bem a um excelente roteiro de cinema, isto nada possui de ficção. Certamente acontece aos montes por aí, principalmente nas regiões dominadas por milícias.


Entendendo-se por milícias: grupos que controlam comunidades urbanas de baixa renda; formados por policiais, bombeiros, vigilantes, agentes penitenciários e militares (em serviço ativo ou fora dele), mas que contam com o apoio de políticos e lideranças locais para impor suas próprias leis de forma arbitrária, desonesta e violenta.

 

Nesse contexto, não é difícil imaginar um miliciano, policial civil que querendo se vingar de alguém, de quem possua apenas o nº de seu CPF ou RG consiga junto a um órgão de identificação civil sua fotografia; junte-a ao ‘banco de dados’ de pessoas procuradas na DP e espere a ocorrência de um homicídio com autoria desconhecida para, com a ajuda de um comparsa disposto a apontar o indivíduo inocente como autor do crime, o auto de reconhecimento fotográfico seja lavrado sem dificuldade alguma.

 

Sendo certo que – daí em diante – tudo tende a transcorrer, quase, automaticamente, pois quem duvida que frente a tal ‘auto’ e perante ao termo de depoimento do reconhecedor dizendo ter presenciado o crime, o delegado de polícia não se convença da necessidade da prisão cautelar da pessoa apontada? Que o parquet não represente por sua prisão preventiva ao Juiz criminal? E que o juiz, então, decrete a prisão sem pestanejar?

O leitor desavisado talvez não acredite que isso possa acontecer, mas quem milita na área criminal e possui alguma vivência, bem conhece as mazelas do sistema de justiça criminal brasileiro.

 

Infelizmente a força apelativa que um auto de reconhecimento fotográfico produz no Brasil ainda é muito grande. Sua simples existência em um procedimento de natureza criminal é, na maioria das vezes, o principal fator, senão o único capaz de caracterizar os “indícios suficientes de autoria”. Expressão empregada no CPP para compor a fundamentação de uma prisão cautelar ou justificar o recebimento de uma denúncia, enquanto petição inicial de um processo criminal.


Isso significa que muitas autoridades públicas que militam no processo penal emprestam ao auto de reconhecimento fotográfico, um valor extremo que acaba por ofuscar a importância de outros aspectos que se merecessem a devida atenção, não referendaria certos desígnios processuais, como prisões desnecessárias e oferecimento de denúncias precipitadas.

 

Ora, é relativamente comum que frente a um auto de reconhecimento, o delegado de polícia, em vez de não economizar esforços para colher algum outro indício de autoria se contente só com ele. Assim, deixa-se de buscar uma prova material da passagem do sujeito pelo cenário do crime como, por exemplo, a coleta das impressões digitais contidas na arma utilizada ou uma evidência orgânico-biológica (exame de DNA sobre sangue, fio de cabelo ou saliva) para certificar-se de que a pessoa reconhecida coincide mesmo com as evidências que a perícia colheu do local do crime.

O grau de torpor ou indolência da autoridade policial, às vezes, é tão surpreendente que uma simples providência como a de convocar o suspeito/reconhecido para prestar declarações sobre o que teria feito no dia do crime é comumente deixada de lado, o que significa dizer ser plenamente possível existir alguém sendo apontado como autor de um crime grave ou ter uma ordem de prisão contra si decretada, enquanto se encontra em casa dormindo. Uma monstruosidade!

 

Assim, tudo conspira contra o indiciado que não tendo podido se defender, sequer mostrar sua versão sobre os fatos ou se fazer assistir por advogado, ainda, conta com todas as más impressões causadas pelo crime. Quanto mais bárbaro tiver sido o crime; quanto mais repercussão midiática houver provocado; quanto mais pavor houver disseminado, maiores serão os argumentos utilizados contra a preservação de sua liberdade.

Nesse ambiente hostil não se compreende porque a polícia, enquanto legítimo órgão responsável pela elucidação do crime e sua autoria, não costuma demonstrar a menor preocupação em investigar a pessoa do reconhecedor. De quem se trata? Qual o seu vínculo com o local do crime? Qual a sua relação com a pessoa da vítima? Se possui antecedentes criminais, etc.

 

Afinal, para além de servir como testemunha ocular do crime, ela própria pode ser a mandante ou executora do delito e, ainda que não se pretenda ver ninguém que chegou ao processo como testemunha virar réu, o mínimo que se almeja é que essa pessoa tenha a sua credibilidade devidamente checada para não conduzir alguém inocente a uma condenação injusta.

 

Ora, o estudo da criminologia indica que, muitas vezes, interessa mais a polícia ter ‘alguém’ para apontar como autor de um crime, ainda que não seja o seu legítimo responsável a não ter ‘ninguém’ para apresentar nas estatísticas finais da Segurança Pública. Bons gráficos e significativos índices de desempenho policial, ainda que ‘maquiados’ podem ser mais interessantes que o desafio em procurar a fundo os reais responsáveis por cada delito noticiado.

 

A lógica funciona mais ou menos assim: é preferível passar a ideia de que os órgãos de segurança estão elucidando crimes. Notícia sempre sedutora aos próprios detentores do poder político e à opinião pública, a que deixar transparecer eventuais indícios de avaria na engrenagem de persecução penal. Quanto mais rápido se produzir notícia de combate à criminalidade, mais rápido também se produz o sentimento de alívio na sociedade. É o efeito perverso de um utilitarismo deturpado!


Nesse diapasão, também o Ministério Público acaba enveredando pelo mesmo caminho do delegado já que atuando como dominus litis, sua atenção termina involuntariamente comprometida só com o conceito de “ordem pública”. Assim, lançando mão de outras expressões igualmente porosas de conteúdo como para “acautelar o meio social” ou para “garantir a credibilidade da Justiça”, o parquet costuma representar pela prisão preventiva do indiciado, sem prova segura de sua participação no crime.

 

E o que se dizer do juiz? Ora, este atuando como se fora a última peça de um dominó a tombar, também é seduzido pela falsa aparência de normalidade, salvo se se tratar de um magistrado muito experiente, capaz de perceber que o indivíduo pode estar sendo preso e processado sem ter conhecimento de nada do que está acontecendo.


Tal desiderato não seria tão terrível assim, caso não se soubesse que depois de preso, o custo para promover uma possível revogação da prisão preventiva no Brasil é extremamente alto e demorado. Na fase processual, notadamente nos crimes graves, dificilmente um requerimento de liberdade obtém sucesso sem que antes tenha visitado, repetidas vezes os gabinetes dos promotores e exaurido o sumário de acusação, o que costuma consumir considerável tempo.

 

Nesse cenário, não é difícil imaginar que a condenação do sujeito seja um desdobramento natural, pois não restará a sua defesa técnica alternativa alguma, senão opor a resistência processual mais difícil de ser exercitada em juízo, a ‘negativa de autoria’ já que todas as circunstâncias diretamente ligadas ao fato não poderão ser exploradas, simplesmente porque delas o réu nada sabe ou conhece, pois se estava em outro lugar, é evidente que não poderá acrescentar nada em relação ao crime.


Desse modo, tudo que sobra para o réu se resumirá ao dia onde efetivamente esteve, cujas circunstâncias – em geral – são inacessíveis por sua memória tendo em vista se tratar de um dia muito comum e de difícil resgate pelo seu subconsciente.

 

Por outro lado, se conseguir lembrar, o que normalmente só acontece se a data coincidir com a de um evento muito relevante para ele, tipo: festa de aniversário ou dia do falecimento de um ente querido, dificilmente os elementos sensíveis (vestígios materiais e/ou documentais) desse episódio deixarão de ser alcançados pelo tempo, deteriorando-se também. E, a depender das pessoas com quem esteve, em sendo parentes, suas declarações não terão validade alguma, em virtude da ausência do compromisso da verdade, conforme estabelecido pelo CPP. Ou seja; a ‘prova de defesa’ resultará absolutamente inócua.

 

Conclusão: uma sentença condenatória acontecerá no bojo de uma ação penal que sequer deveria ter sido intentada, visto que foi direcionada contra uma pessoa, no mínimo, mal identificada. E como se não bastasse essa sentença dificilmente conseguirá ser reformada, salvo se houver uma ‘revisão criminal’ (recurso), capaz de vencer a resistência de nossos tribunais superiores, ainda muito presos a um modo de pensar do século passado.

 

Afinal, nenhuma razão há mais para se acreditar que vícios ou deficiências verificadas no âmbito do reconhecimento de pessoas sejam considerados meras ‘irregularidades’, conforme teimosamente vem entendendo o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal.
Uma jurisprudência que remonta uma época onde não se conhecia os sistemas tecnológicos de hoje e tampouco se conhecia os avanços da genética (DNA), capazes de identificar pessoas com grau de certeza, quase absoluto, indicando que o reconhecimento de pessoas (‘presencial’ e/ou ‘fotográfico’) não pode prescindir de outros meios de convicção fornecidos pela medicina legal e ciências forenses.


O custo social de um reconhecimento mau feito, seja por fraude ou engano da memória de quem couber identificar outrem, não pode ficar circunscrito somente à pessoa do reconhecedor porque as suas sensações ou experiências sinestésicas são privadas, inacessíveis a quaisquer outras pessoas. A confirmação por outros meios de prova objetivos é essencial, sob pena de dar azo a prisões açodadas, processamentos sem lastros probatórios e condenações injustas, cujo fardo recairá somente sobre os ombros do próprio sujeito passivo do sistema penal.

A ideia de que vícios ocorridos na fase pré-processual não repercutem na fase processual porque, nesta, vigora as garantias do devido processo legal é outra utopia de que se necessita desapegar já.

 

Nada cura uma prisão injusta, independentemente de quando tenha ocorrido e por quanto tempo tenha durado. Nenhuma ordem de habeas corpus ou reforma de sentença penal condenatória compensa às chagas gravadas na personalidade de quem sofre uma violência desse jaez. A estigmatização e o etiquetamento acompanharão essa pessoa como se fosse uma tatuagem impressa na alma.


Os operadores públicos do processo criminal (delegados, promotores e juízes), não podem mais se conduzir como se conduziam há décadas passadas. Não se admite mais delegados presidirem inquéritos policiais; membros do MP exararem manifestações e juízes proferirem decisões, movidos pelas mesmas impressões de outrora, até porque, a marginalidade também mudou.

 

É preciso que nossos operadores do direito superem a resistência atávica a nova realidade, pois todo pensamento humano só evolui quando arrasta à frente suas bases teóricas, forçando a formulação de novas formas de pensar, pois como bem asseverou Luís Roberto Barroso: “toda interpretação é produto de uma época, de um momento histórico, e envolve os fatos a serem enquadrados, o sistema jurídico, as circunstâncias do intérprete e o imaginário de cada um”[4].

 

Fica a dica: urge lançar um novo olhar crítico para o que se deve entender, como valorar e como admitir (ou não) o “reconhecimento de pessoas” no novo processo penal brasileiro.

 

Rio de Janeiro, 09 de julho de 2014.

 

[1] ALTAVILLA, Enrico. Psicologia guidiziaria – II processo psicológico e La verità giudiziale. Torino: UTET, 1948, t. I, p. 327.

 

[2] Dispõe o art. 226 do CPP: “quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:

 

I – a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;

 

II – a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;

 

III – se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou qualquer outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela.

Parecer ao IAB sobre PL que visava consagração legislativa do princípio da insignificância

 

 

 

 

 

PARECER: Comissão de Direito Penal
Dr. Walter Arnaud Mascarenhas Jr sobre Projeto
de Lei do Senado, nº. 312/2010 de autoria do
Senador Antônio Carlos Valadares.

 

PALAVRAS-CHAVE: Direito Penal – Princípio da Insignificância

 

 

EMENTA: I – Direito Penal (Parte Geral) e Processo Penal. II – Alteração do Decreto-Lei nº. 2.848/40 (Código Penal) para inclusão do Princípio da Insignificância. III – Desnecessidade de consagração legislativa. IV – Doutrina e Jurisprudência possuem mecanismos para integrar a lei sem acréscimo material de dispositivo. V – Solução ‘caso-a-caso’.

 

I – RELATÓRIO

 

Trata-se de consulta formulada à Comissão de Direito Penal do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB sobre o projeto de lei em epígrafe que visa inserir no corpo da legislação penal o ‘princípio da insignificância’ como fundamento para tornar atípicas as condutas incapazes de ofender o bem jurídico tutelado pela ordem jurídica.

 

Para o proponente a legislação penal deve conter dispositivos próprios com as seguintes redações:

 

Exclusão de Tipicidade


Art. ‘22 – A’ salvo os casos de reincidência, ameaça ou coação, não há crime quando o agente pratica fato cuja lesividade é insignificante.

Atipicidade em razão da Insignificância da Conduta


Art. ‘23 – A’ É atípica a conduta incapaz de ofender bem jurídico tutelado pela lei penal.

 

A justificativa para a alteração supra reside em que não basta a mera subsunção do fato a letra fria da lei para satisfazer o requisito analítico de tipicidade.

 

A tipicidade não se satisfaz só pelo aspecto formal, mas também pelo aspecto material, sendo necessária a efetiva ofensa ao bem jurídico.

Neste sentido sustenta que “ações toleradas pela coletividade ou causadoras de danos desprezíveis ao bem jurídico não se abrangem pelo tipo legal de crime”.

 

Na sequência, estabelece o paralelo entre o “crime de bagatela” e o “princípio da insignificância” para ressaltar não serem exatamente a mesma coisa e, destaca a impropriedade de uma corrente de promotores e juízes monocráticos que não reconhecem o princípio da insignificância como excludente de tipicidade penal.

 

Segundo crê, o argumento utilizado por essa corrente é o de que a “lei penal não faz referência à quantidade de lesão necessária para configurar-se um delito”, pois “não seria possível auferir o que é realmente insignificante, medindo o valor do bem para dar-lhe proteção jurídica”, o que “esvaziaria o Direito Penal” de sobremaneira. Daí porque a seu ver, tal corrente encontra-se ultrapassada, na medida em que considera apenas a tipicidade formal da conduta para extrair a hipótese criminosa, não possuindo a menor capacidade para enxergar além da prescrição legal.

 

Por outro lado, relembra o posicionamento jurisprudencial do STF que vem aplicando sistematicamente em suas decisões o princípio da insignificância em flagrante demonstração de vanguarda se comparado aos tribunais inferiores, ainda muito reticentes em aplicá-lo.

 

E, por fim, destaca o quão lamentável é a manutenção do sistema atual sob o viés do custo social, seja porque muitas vezes os acusados são presos (provisoriamente), embora sequer lhes caibam uma pena de prisão, fruto de uma condenação propriamente dita, seja porque a ausência do princípio da insignificância acaba favorecendo o encarceramento dos mais pobres em descompasso com os mais abastados que podem pagar bons advogados e fazer seus processos andarem mais rapidamente, fortalecendo a impressão de que existe dois pesos e duas medidas.

Esse é o relatório.

 

II – FUNDAMENTAÇÃO

 

O princípio da insignificância não constitui novidade entre nós e há muito vem sendo aplicado pela jurisprudência brasileira, embora ainda constitua um instituto de tímida aplicação.

 

Sem embargo da diferença sistemática entre princípio da insignificância e o que se deve entender por infração bagatelar, aqui de pouca valia, o fato é que tanto estes critérios, como outros conhecidos por adequação social e o do risco permitido existem para mediarem à força entre o poder punitivo e as liberdades individuais.

 

A questão reside em saber se tais critérios, a par de servirem para afastar a ilicitude da conduta ou a sua tipicidade – conforme o caso e a doutrina de seu tempo – necessitam de consagração legislativa.

 

No Brasil mesmo, todos, sabem que o princípio da insignificância está implícito no Código penal militar em seu art. 209, § 6º, assim redigido: “No caso de lesões levíssimas, o juiz pode considerar a infração como disciplinar”. Vê-se aí que o legislador outorgou ao juiz o poder-dever de declarar a ausência de tipicidade penal pela insignificância da ofensa ao bem jurídico principal (integridade física), acarretando somente consequências administrativas, de ordem disciplinar. Ou seja, prestigiou-se o caráter fragmentário do Direito Penal, remediando o injusto pela solução administrativa menos rigorosa.

 

Um fator complicador emerge já do próprio conceito da insignificância a luz do direito. Para Luiz Flávio Gomes e jurisprudência abalizada, trata-se de um preceito que reúne quatro condições essenciais para ser aplicado: 1 – A mínima ofensividade da conduta, 2 – A inexistência de periculosidade social do ato, 3 – O reduzido grau de reprovabilidade do comportamento, 4 – A inexpressividade da lesão.

 

Daí resulta uma complexa consideração axiológica de distintas categorias, demandando do operador do direito inferir do caso concreto, o que seja ou constitua: ‘a ofensividade da conduta’, ‘a periculosidade social do ato’, ‘o seu grau de reprovabilidade’ e ‘a inexpressividade da lesão’.

Decerto, nenhuma dúvida tenho em me solidarizar com o entendimento de que, para a configuração tipicamente criminal seja necessária a concorrência da tipicidade formal com a tipicidade material, aquela como sendo a ‘conflagração perfeita do ato praticado com a sua descrição na lei penal’ e esta como sendo ‘ valorização da relevância jurídico-penal da lesão’.

 

Essa tese, hoje pacífica na doutrina, traduz o resultado de anos de evolução dogmática, especialmente atribuíveis a Claus Roxin e Eugênio Raul Zaffaroni, o primeiro por seus contributos a própria ‘noção de insignificância’ e ‘risco permitido’ e ao segundo, pela criação de sua ‘teoria da tipicidade conglobante’, a partir das quais, ambos pretendem afastar a incidência ao tipo objetivo. Roxin valendo-se da ideia de que ‘não havendo criação de risco para o bem jurídico, não se pode cogitar em tipicidade’ e Zaffaroni ancorando-se na ideia de que ‘o que se proíbe realmente não é ordenado nem fomentado pelo direito’.

 

De qualquer modo, há que se ponderar até onde vale mais a pena apostar; na obediência a legalidade ou na discricionariedade e/ou valoração judicial. Afinal, como dissera Ferrajoli:


A sujeição do juiz a lei já não é de facto, como no velho paradigma juspositivista, sujeição à lei somente quando válida, ou seja, coerente com a Constituição. E a validade já não é no modelo constitucionalista-garantista, um dogma ligado à existência formal da lei, mas uma sua qualidade contingente ligada à coerência – mais ou menos opinável e sempre submetida à valorização do juiz – dos seus significados com a Constituição. Daí deriva que a interpretação judicial da lei é também sempre um juízo sobre a própria lei, relativamente a qual o juiz tem o dever e a responsabilidade de escolher sempre somente os significados válidos, ou seja, compatíveis com as normas constitucionais substanciais e com os direitos fundamentais por elas estabelecidos. (FERRAJOLI, Luigi. O direito como sistema de garantias, apud SILVA FRANCO, Alberto. O juiz e o modelo garantista, publicado no Boletim nº. 56 – Julho /1997).

 

Por isso, cabe a reflexão se as ferramentas reducionistas do poder punitivo, em geral, salutares, merecem mesmo migrar da doutrina e da jurisprudência para a legislação ou não!

 

Certamente o Direito Penal moderno não duvida mais do acerto que constitui as correntes de cunho ‘minimalista’, ‘garantista’ e ‘fragmentário’, mas disso não se deduz a certeza de que seus préstimos poderão ser alcançados diretamente dos textos de lei.

 

Basta lembrar que atualmente nossos tribunais superiores estão vivenciando ativa discussão acerca da aplicação ou não do princípio da insignificância no âmbito da justiça castrense que, mesmo reconhecendo em seu código – para determinados casos – veem gerando dúvidas.

 

Em 21 de outubro de 2010 – por exemplo – o STF por 6 votos a 4 firmou precedente de que o princípio da insignificância não pode ser utilizado para beneficiar militares flagrados com reduzida quantidade de entorpecentes em ambiente militar, tendo o ministro Ayres Britto sintetizado: “O uso de drogas e o dever militar são como água e óleo, não se misturam. ”

 

Malgrado o acima, nos dois tribunais vem se aplicando o princípio da insignificância em furtos de pequena monta, como os de bala ou barras de chocolate em supermercados e congêneres.

 

Entretanto, em 30/03/2011, o STJ denegou uma ordem de habeas corpus para um policial que, no horário do serviço teria furtado de um supermercado uma caixa de bombons, colocada por baixo de seu colete militar. A decisão lastreou-se no entendimento de que, embora a lesão jurídica provocada fosse inexpressiva, a conduta do agente foi altamente reprovável, vista se tratar de um policial militar e encontrar-se fardado no momento do furto. Segundo o ministro Dipp, relator do HC, a conduta do policial não condizia com o “reduzidíssimo grau de reprovabilidade” exigível para o reconhecimento da insignificância, pois “o policial representa para a sociedade confiança e segurança”.

 

Em ambos os julgados (do STF e STJ) também foram influentes alguns princípios, próprios de natureza militar como os da hierarquia e disciplina, indispensáveis no regime jurídico castrense.

 

Porém, a situação pode ficar ainda mais embaraçosa em outros campos. Imagine-se a hipótese de um magistrado, em plena audiência, furtar uma caneta esferográfica de um advogado. Nesse caso, estando o projeto de lei sob comento em vigor, notadamente o art. “23 – A”, a pergunta que não quer calar é: Tal lei deve ser aplicada ou não? A conduta do juiz deve ser considerada insignificante?

 

A julgar pelo direito positivo, ‘sim’, mas será que os requisitos eleitos por nossa doutrina e jurisprudência recomendariam sua aplicação? Aqui, por muito mais razão, a resposta deve ser negativa. Afinal, se para um policial, a sociedade deve depositar confiança e segurança, o que se dirá de um juiz de Direito, a própria personificação da Justiça?

 

A mim parece que, embora louvável seja a iniciativa de tentar frear o poder punitivo, o viés legislativo pode trazer mais inquietação do que segurança jurídica.

 

É dizer, o fato de incluir-se na lei o princípio da insignificância, conforme proposto no projeto de lei, realmente traria novos horizontes para nossos ministros resolverem melhor a situação dos policiais militares citados? E o que dizer da hipotética situação do juiz?

 

Em minha modesta avaliação, não percebo grande vantagem, principalmente porque algo parece sugerir que em casos onde figure como possíveis imputados pessoas que por sua importância, a sociedade exige maior respeito, o requisito do reduzido grau de reprovabilidade comportamental sempre restaria intransponível. Conclusão: ou teríamos uma solução do ponto de vista legal adequada, mas injusta ou, teríamos uma solução do ponto de vista legal inadequada (contra legis), mas justa. Não sei o que seria pior!


Acrescer no dispositivo do projeto de lei determinadas circunstâncias poderiam ser interessantes, mas aí não me atrevo a sugeri-las porque “a emenda pode sair pior que o soneto”, até porque, corre-se o risco de adentrar em outros meandros do injusto (culpabilidade e ilicitude), cuja parte geral do código penal brasileiro levou décadas para sedimentar.

 

A meu sentir, o problema não está na consideração da insignificância da lesividade prevista no artigo “22 – A”, tampouco na possibilidade de se admitir atípico o fato pela incapacidade da ofensa ao bem jurídico prevista no art. “23 – A”, mas na qualificação da conduta do agente.

 

III – CONCLUSÃO

 

Prefiro acreditar no bom uso da doutrina e do direito comparado para, quando não conflitante com o direito pátrio, modular a nossa jurisprudência, aperfeiçoando e estimulando cada vez mais a aplicação do princípio da insignificância nos casos concretos.

 

Aliás, faz-se importante lembrar que embora no Brasil seja comum emprestar-se ao princípio da insignificância caráter de generalidade, é bom deixar claro que para Roxin – tido por muitos como o seu criador – o princípio da insignificância não passa de um padrão interpretativo da clausula de reprovabilidade inserta no crime de constrangimento ilegal (Notigung, 240 StGB) do código penal alemão compondo, juntamente de outros princípios, o que se convencionou chamar de “doutrina dos princípios”. Sendo certo, porém, que funciona lá (na Alemanha) como mero limitador de um dispositivo legal da parte especial, sem eficácia generalizante.

 

Por outro prisma, para o “mal” suscitado pelo proponente do projeto quanto à questão da prisão (provisória) quando, nem na hipótese de condenação seja aplicável uma pena privativa, já que muitas vezes, essa liberdade só é alcançada quando o processo chega a um dos tribunais superiores, isto não ocorre por deficiência de norma de direito material (descriminalizadora).

 

É para a criminalização de condutas que se exige lei anterior definindo-a e não o inverso. Por conseguinte, tudo que não está na lei penal não é crime, pois a regra é que se possa fazer tudo, salvo as proibições previstas em lei.

 

Portanto, não é necessário haver outra norma permissiva na parte geral do código penal, os institutos já existentes são suficientes. A solução para minimizar a questão das prisões por condutas irrelevantes ou lesividades insignificantes deve ser extraída da norma processual, de onde é possível, por exemplo, aplicar-se os artigos 396 e 397, III do CPP para liminarmente se rejeitar a acusação ou absolver sumariamente o imputado, ou ainda, considerar ilegal a prisão por falta de justa causa (art. 648, I). Basta que se tenha coragem e habilidade para manejar estes institutos no momento apropriado.

 

Afinal, toda a ação penal – verificadas as ressalvas feitas – calcada em fato de onde não seja possível extrair relevância jurídico-penal e nem ofensa ao bem jurídico, seja com base no risco permitido, na insignificância jurídica do fato ou na adequação social, não pode ser considerada típica e, como tal, carece de justa causa.


Feitas tais considerações é o parecer no sentido de que seja rejeitada a alteração ao Código Penal (Decreto-Lei nº. 2.848/1940), uma vez acreditar que a legislação em geral (Código Penal e Código de Processo Penal) já contém mecanismos suficientes para solucionar os problemas suscitados, devendo toda a problemática ser resolvida ‘caso a caso’.

 

É o parecer.

 

 

Walter Arnaud Mascarenhas Jr
Advogado

A HIPOCRISIA DO DISCURSO DA PRISÃO PREVENTIVA

 

 

 

Walter Arnaud Mascarenhas jr
Mestre em Ciências Penais/Criminologia
pela UCAM/RJ, membro da Comissão de
Direito Penal do IAB e Advogado criminalista

 

 

 

Sumário: Introdução – 1. A questão do ‘mérito’ ou ‘exame de provas’ e a via estreita do habeas corpus – 2. A questão da gravidade do delito versus a legislação penal – 3. A questão do foragido versus a garantia de aplicação da lei penal – 4. A questão da (in)transcendência e da (in)ofensividade – 5. Balanço final: Estado versus Direito de Defesa.

 

Resumo: O instituto da prisão preventiva há muito é palco de calorosas discussões e boa parte dos operadores do Direito com alguma vivência no Processo Penal compartilham das principais idéias para a sua correta aplicação. Assim, não são novos os discursos contra a falta ou a deficiência da fundamentação no ato de sua decretação. Seus pressupostos e requisitos são bem conhecidos de todos: alunos, professores, jurisconsultos, advogados, defensores, delegados, promotores e magistrados, ninguém duvida de seus exatos contornos. Entretanto, estranhamente, na práxis processual da Justiça criminal de 1º e 2º graus de todo o país, o que se revela é uma completa desarmonia. Este trabalho visa investigar porque isso acontece; quais são os mistérios que governam esses desacertos se, aparentemente, todos concordam com suas ideias reitoras.

 

Palavras-chaves: Prisão preventiva – Liberdade provisória – Gravidade do delito – Habeas corpus – Garantismo penal.

 

Abstract: The institute of preventive custody has been for a long time a stage of heated discussions, and a good number of Attorneys, with some experience in Penal Proceeding, share the main ideas for its correct enforcement. Therefore, the speeches against the lack or insufficiency of grounds in the act of their decreeing are not new. Their assumptions and requirements are well known by all: students, professors, jurisconsults, attorneys, defense attorneys, delegates, public prosecutors and magistrates, no one question their exact contours. However, in the procedural praxis of criminal justice of 1st. and 2nd. degrees all over Brazil, what we find is a complete lack of harmony. This work aims at investigating why this happens, and which are the mysteries governing such errors, when apparently everyone agrees with its major ideas.

 

Key Words: Preventive Custody; Release on Own Recognizance; Offense Seriousness; Habeas Corpus; Penal Guarantism.

 

Área do Direito: Penal – Processo Penal

 

Introdução: A Constituição Federal da República do Brasil proclama em seu artigo 5º (LXVI) que: “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança. ” Daí, decorre a certeza de que a prisão preventiva é exceção, cuja a regra é a liberdade provisória.

Atualmente, embora ninguém mais duvide dos efeitos colaterais da prisão preventiva dentro do ordenamento jurídico, ainda se percebe certa reminiscência de ordem política em contestá-la, notadamente nos anais da imprensa e de certos seguimentos da sociedade civil. Muitos formadores de opinião apregoam o fortalecimento da prisão preventiva como mecanismo de Defesa Social. Para este grupo, o recrudescimento da lei e do poder de polícia são decorrências lógicas e naturais.

 

Neste compasso, a tensão entre os que incentivam a extensão do uso da prisão cautelar contra aqueles que a limitam é notável nos discursos políticos, nos artigos especializados, nas entrevistas com autoridades, artistas e também no âmbito acadêmico, próprio das Ciências Sociais ou Humanas.

Quem nunca se deparou após um crime bárbaro, de grande repercussão na mídia com discursos do gênero: isso aconteceu porque a lei é fraca! No Brasil, a pessoa comete um crime agora e daqui a pouco já está na rua de novo!

 

Da mesma forma, também é corriqueiro se ver gente falando, exatamente o contrário, tipo: o problema criminal não é um problema de lei, mas de cultura ou educação! É um absurdo ter de manter alguém preso, enquanto dura o processo em um país onde os processos se arrastam indefinidamente!

 

Pois bem, envoltos neste cabo de guerra os dois grupos, mesmo, possuindo relevantes aspectos positivos e negativos por estarem fundados sobre bases bem definidas e fáceis de serem identificadas, não constituem ainda o tema-foco deste trabalho.

 

Minha preocupação reside em uma questão bem mais nebulosa e porque não dizer, dissimulada. Refiro-me aos adeptos do segundo grupo, dos que ostentam a mesma bandeira, qual seja: a do uso comedido da prisão preventiva. Defendem a liberdade provisória como regra e proclamam o respeito ao Estado Democrático de Direito e ao Garantismo Penal, cujo grupo, muitas vezes, é o mesmo que se vê lecionando nas melhores universidades do país e se encontra no exercício do poder judicante pautando as decisões mais importantes do Brasil.

 

Aliás, nos cursos preparatórios para as grandes carreiras jurídicas é corriqueiro o discurso de que a prisão preventiva deve ser manejada com toda moderação possível, devendo se subordinar ao binômio necessidade/utilidade e sempre guardar correspondência aos ditames do art. 312 do Código de Processo Penal.

Entretanto, não raro se percebe uma espécie de força motriz atuar nas ‘mãos’ que redigem as manifestações do MP e as decisões judiciais de 1º e 2º graus fazendo com que muitos pleitos de revogação de prisão preventiva, embora bem formulados e calcados sobre decretos desprovidos de suporte idôneo, sejam rechaçados liminarmente.

 

Ora, se por trás dessas decisões estão às mesmas autoridades das salas de aula; mestres e doutores em Ciências Penais que professam a liberdade provisória como uma das manifestações mais importantes do Devido Processo Legal porque será que não é reproduzido no Judiciário o mesmo discurso das salas de aula?

 

Há tempos percebo que para além do conhecimento técnico jurídico existe uma ideologia camuflada, não admitida pelas autoridades constituídas. Algo presente no subconsciente coletivo das autoridades que detêm o poder de decisão. Algo que, certamente não decorre de má-fé, mas de um sentimento que não pode ser traduzido por palavras e, muito menos, pode ser escrito porque contrastaria com os grandes tratados e com as decisões pretorianas de vulto histórico e filosófico.

É a respeito desta vexata quaestio que pretendo discorrer, procurando vislumbrar um ponto de fuga para certos julgadores onde, em vez de, admitirem a presença dos requisitos para a revogação de uma prisão cautelar e conceder a liberdade, acabam ou distorcendo completamente os pedidos que lhes são feitos ou aplicando uma fundamentação mais apropriada ao ponto de vista contrário ao que se dizem defensores. Resultado: A decisão é, quase sempre, injusta ou incoerente.

 

E nos arredores dos tribunais? Vive-se um mundo de faz de conta, onde teoria e prática não se harmonizam, assim como lei e fato não se integram. Os advogados fazem de conta que seus clientes são ‘bonzinhos’ ou ‘inocentes’, não praticaram o crime nas circunstâncias da denúncia, enquanto os julgadores fazem de conta que essas questões ‘não têm a menor importância’ para a concessão da liberdade, pois estão relacionadas ao meritum causae. Da mesma forma, a jurisprudência faz de conta que não contempla a gravidade do crime como empecilho para a concessão de liberdade provisória porque a lei já a considera quando da fixação dos parâmetros da reprimenda penal.

 

Enquanto isso, os advogados fazem de conta que acreditam (…) e por aí vão tantas e tantas outras ilusões do gênero. Tentarei enfrentar só algumas delas.

 

1– A questão do ‘mérito’ ou ‘exame de provas’ e a ‘via estreita’ do habeas corpus.

 

¹ Uma certa escola moderna de psicologia define o ‘subconsciente coletivo’ como uma entidade que a investigação científica não poderia atingir diretamente, – já que o inconsciente não pode, como tal, tornar-se consciente, – mas cujas disposições latentes, abusivamente chamadas de ‘arquétipos’, podem ser inferidas de certas ‘erupções’ irracionais da alma (…) BURCKHARDT, Titus. Le Paysage dans I’Art extreme-oriental in Príncipes ET Méthodes de I’ Art. Sacré, p. 187, Dervy-Livres, Paris, 1976 (Trad. Luiz Pontual)
 

Qual militante da área criminal nunca viu uma Ementa que contivesse o seguinte: “A estreita via do HC não comporta exame do mérito da imputação”, ou então; “Não cabe exame de provas nos limites do HC”.

 

Certamente, todo mundo já viu e nem precisa impetrar HC ou chegar ao 2º grau de jurisdição para ver decisões salientando não se confundirem o mérito, atrelado ao direito substancial com questões instrumentais como são as relativas à prisão cautelar. Tal assertiva tem a sua razão de ser na própria natureza dos institutos, o Direito Penal como Ciência que aborda os crimes em espécie e o Direito Processual Penal como instrumento ou meio para dar exequibilidade a quem realizou a conduta típica.

 

Assim, também não resta duvida que sendo o HC uma via de cognição sumária, seu âmbito não pode abarcar uma investigação de conteúdo aprofundado, pois para isto existe o próprio Processo Penal, devidamente estruturado para acolher todas as discussões atinentes ao crime e as suas circunstâncias. O problema é que o desrespeito a noção de que o habeas corpus não deve servir para adentrar ao mérito ou analisar provas, não constitui um erro exclusivo dos impetrantes é mais comum do que se pensa, também entre os próprios julgadores.

 

É dizer: a Defesa quando deduz um pedido de revogação de prisão preventiva e o faz com base no mérito ou nas provas produzidas no processo é, sempre, chamada à atenção, merecendo o indeferimento do pleito acompanhado de certa lição acadêmica.

 

Nesse sentido:

 

HABEAS CORPUS – CRIMINAL – ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. – EXAME APROFUNDADO DO MÉRITO E DA PROVA NO WRIT. IMPOSSIBILIDADE – RELEV NCIA DA PALAVRA DA VÍTIMA – PRECEDENTES ORDEM DENEGADA.


1- O habeas corpus não comporta exame aprofundado da prova e do mérito da imputação.


2- A palavra da vítima é de alta relevância nos crimes de estupro e atentado violento ao pudor, cometidos na clandestinidade. (Precedentes).


3- Ordem denegada. (HC nº 66.651/SP – 2006/0204474-0)

 

“A ação de habeas corpus constitui remédio processual inadequado, quando ajuizada com objetivo (a) de promover a análise da prova penal, (b) de efetuar o reexame do conjunto probatório regularmente produzido, (c) de provocar a reapreciação da matéria de fato e (d) de proceder à revalorização dos elementos instrutórios coligidos no processo penal de conhecimento. ” (HC nº 69.780 – STF)

 

Todavia, o mesmo equívoco não é difícil de ocorrer por parte do Estado, isto é, quando o Juiz denega o pedido em sede de HC ou no âmbito do processamento da causa. Chegando a ser até frequente ver decisões indeferindo pedido de revogação de prisão preventiva, onde o fundamento utilizado se mistura com questões meritórias ou de prova. O curioso é que, muitas vezes, mesmo cônscio do equívoco, o julgador não perde o hábito professoral de opor conceituações corretas do ponto de vista técnico, mas nem por ele mesmo observadas na hipótese sub examen. É o exemplo abaixo:

“A prisão preventiva se revela como medida de natureza cautelar de caráter excepcional, só podendo ser decretada nos casos em que, havendo prova da existência do crime e indício suficiente de autoria, estiverem presentes os requisitos autorizadores, previstos no art. 312 do CPP.
(…)
No presente caso, narra a peça acusatória a existência de uma poderosa organização criminosa, especializada no comércio ilícito de substância entorpecente entre países da América do Sul e da Europa, assim como na ocultação dos lucros auferidos com esta atividade criminosa mediante a aquisição de postos de gasolina e investimentos na indústria petroquímica, de molde a caracterizar o crime de lavagem de dinheiro de que trata o artigo 1º, I, da lei nº 9.613/98.
Relata a inicial que a droga comercializada pela organização era produzida na Colômbia, saindo de lá para o Uruguai, de onde era enviada para a Espanha – ponto de partida para a distribuição aos demais países da Europa – e para os Estados Unidos da América. O dinheiro então arrecadado retornava ao Uruguai, em vôos comerciais, onde os integrantes da quadrilha transportavam milhões de euros e dólares, ingressando, posteriormente no território nacional, mediante transferências supostamente legais, já que os denunciados tomavam o cuidado de obter autorização do BACEN para investimentos em indústrias petroquímicas, postos de gasolina e empresas cujo proprietário de fato era o denunciado XXXXXXXX, apontado pelas investigações como o chefe da organização criminosa.
(…)
Com efeito, a denúncia revela fortes indícios de que a acusada XXXXXXX praticava atos de administração dos postos de gasolina adquiridos pela quadrilha, figurando no estatuto social de diversas empresas de propriedade da organização criminosa, denotando efetiva atuação nas práticas de lavagem de dinheiro, tendo sido constatado vínculo de seu nome com os dados registrais de várias contas bancárias de titularidades dos postos pertencentes à organização (…)
Isto é o que se constata do monitoramento dos terminais telefônicos por ela utilizados, que permite inferir sua participação nos “negócios” da quadrilha, conforme se extrai dos seguintes diálogos:
(…)
Como se infere dos diálogos acima transcritos, não se trata de pré-julgamento ou antecipação de cumprimento da pena, mas sim de retirar do convívio social elemento completamente inserido dentro de organização criminosa com tentáculos em vários países, altamente organizada e que necessita ser urgentemente desmantelada, preservando-se a ordem pública, já que não se tem dúvidas de que o tráfico internacional de entorpecentes é delito que dispensa maiores dissertações a respeito da grave ameaça que representa para a segurança pública e a paz social.


Igualmente, não se está aqui a fundamentar decisão de 1º grau, mas sim de reconhecer que embora sucinta, a decisão monocrática não padece de qualquer vício e encontra seu respaldo nos elementos constantes dos autos, os quais evidenciam a presença dos requisitos do art. 312 do CPP, autorizadores da prisão preventiva decretada. Pelo exposto, DENEGO A ORDEM. ” (HC nº 2007.02.01.005068-3 TRF/RJ)

 

A decisão acima incide justamente naquilo que ela mesma faz questão de negar, isto é, de que não está fazendo um ‘pré-julgamento ou antecipação de cumprimento da pena’ ou ainda, ‘fundamentando a decisão de 1º grau’.

 

Ora, é claro que está fazendo tudo isso ‘sim’. Este é um caso clássico de supressão de instância ou usurpação do poder judicante de 1º grau. O Tribunal não podia se imiscuir a fazer considerações de prova, transcrevendo diálogos de interceptação telefônica e precipitando considerações acerca do modus operandi da suposta organização criminosa. Se não deve o impetrante adentrar no exame de mérito e na análise de provas quando impetra uma ordem de habeas corpus, também não deve o Estado-Juiz fundamentar suas decisões com base nestes mesmos elementos para rechaçar o pedido.

 

Como se não bastasse, existe, ainda, o problema do desrespeito a via de cognição sumária por onde todo HC deve ter curso. Já vi Juiz apontar a deficiência do decreto de prisão provisória e, em vez de deferir o pedido de medida liminar dar nova chance para a autoridade coatora fundamentar a necessidade da prisão preventiva. Uma providência incompatível com a natureza do HC:

 

“(…) é de se ver que o decreto judicial que acolheu o pedido ministerial e decretou a prisão preventiva do paciente carece da necessária fundamentação, uma vez que a mera justificação de que “presentes seus pressupostos” não preenche os requisitos legais de fundamentação específica ao caso concreto. Não bastasse isso, a decisão que a esta sucedeu, pela qual a denúncia foi recebida, também não traz nenhuma explicação dos motivos pelos quais a prisão preventiva deve ser mantida (…)


De qualquer forma, considerando-se que descabe a este juízo de segunda instância proceder originalmente a adequada análise da necessidade desta prisão preventiva, apresentando os fundamentos que a sustentam, até porque se assim o fosse, suprimindo estaria um grau de jurisdição para o paciente, e ainda considerando-se que a primeira decisão adotada (a que decretou a preventiva) se deu em sede de plantão no dia 28.03.2007, o que inviabiliza muitas vezes uma escorreita e adequada análise do caso, determino que se oficie o ilustre juízo impetrado para que este, no prazo de 48h (quarenta e oito horas), não apenas preste as informações cabíveis como fundamente adequadamente a necessidade da prisão preventiva decretada” (HC nº 5051.2007.02.01.003968-7 TRF/RJ)

Eis aí uma decisão inquinada por um estrondoso error in procedendo, à medida que, subverteu a dinâmica procedimental do HC. Permitiu ao Estado errar duas vezes à custa do sacrifício do paciente, pois em lugar de desonerá-lo com o deferimento da liminar e conseqüente concessão de sua liberdade permitiu a autoridade coatora fundamentar, outra vez, a decisão de mantê-lo preso. Fato que, ao menos, não passou despercebido pela corte suprema quando tomou conhecimento do assunto:

 

“(…) Percebe-se claramente que a situação do paciente daquele habeas corpus foi agravada pelo despacho do juiz convocado do TRF da 2ª Região. Este, apesar de reconhecer a fragilidade do decreto prisional, diga-se de passagem, comum a todos os envolvidos determinou ao juízo de origem que fundamentasse adequadamente a decisão, quando o certo seria conceder a liminar. Em outras palavras, viabilizou-se, em habeas corpus, de forma esdrúxula, a oportunidade de reformatio in pejus (…)” (HC nº 93.803-5/RJ – STF. DJE 11.09.2008, Rel. Min. Eros Grau)

 

A expressão ‘esdrúxula’ acima utilizada bem retrata o quão terrível foi à decisão porque nela, expressamente, se permitiu unir duas coisas entre si distintas e inconfundíveis, a fundamentação com as informações, pois é lógico que a fundamentação há de ser, sempre, anterior a efetivação da prisão. Deve constar do decreto de prisão como sendo o elemento que justifica a restrição da liberdade alheia. Enquanto, as informações hão de vir sempre posteriores ao decreto, visam, só, esclarecer eventuais duvidas à autoridade judiciária superior a quem é endereçada. Sendo, por isso, dispensáveis. Tendo o STF há muito tempo ensinado que:

 

“As informações não substituem a fundamentação exigida em lei. Não há despacho, decisão ou sentença que adote fundamentação a posteriori, depois de produzir efeitos” (HC nº. 44.499, 2ª Turma, Rel. Min. Evandro Lins e Silva, DJ de 23/2/68) “O despacho que decreta a prisão preventiva, quando falho, não se considera sanado por fundamentação suplementar, depois de haver produzido efeitos” (HC nº. 56.900, 1ª Turma, Rel. Min. Rafael Mayer, DJ de 27/4/79).

Pena que passados, quase, meio século, da advertência que subjaz deste entendimento jurisprudencial, poucos sejam os Juízes que a observam.

 

2 – A questão da gravidade do delito versus a legislação penal

 

Também é cediço nos tribunais superiores que a gravidade do crime, por si só, não é o bastante para fundamentar uma prisão cautelar.

 

“A prisão preventiva para a garantia da ordem pública, fundada na gravidade do delito e na necessidade de acautelar o meio social, não encontra respaldo na jurisprudência deste Tribunal” (Gilmar Mendes. Min. do STF)

 

Embora, hoje, pacífico na doutrina e na mais alta corte de Justiça do país, muitos juízes continuam teimando em decretar prisões, movidos, unicamente pela revolta que a violência do crime induz.

 

“O inquérito policial demonstra que os acusados se concentraram para a prática do crime patrimonial narrado na denúncia, empregando para tal arma de fogo, situação que, por si só, autoriza a concluir pelo risco que os mesmos apresentam à sociedade se mantidos soltos”. (Proc. nº. 2009.204.001001-0/1ª Vara Criminal de Bangu – RJ)

 

A decisão em destaque representa exemplo típico de como não se deve fundamentar uma prisão cautelar. A fragilidade da argumentação assusta porque não agrega nenhum elemento válido. A gravidade do crime que, em tese, deve servir como aspecto para qualificar a pena ou sopesar o juízo de culpabilidade é, aqui, antecipada para o âmbito processual dando à prisão provisória uma conotação de prisão pena. Assim, o emprego de arma de fogo acabou assumindo uma feição irremediável ou implacável. A gravidade do crime operou o comprometimento, em definitivo, da conduta do individuo, impedindo-o corrigir-se depois, com uma postura conforme o devido processo legal, o que seria o mais desejável já que todo o juízo de cautelaridade deve ser estritamente instrumental e não um fim em si mesmo.

 

Vale para a gravidade do crime a mesma crítica feita com relação às questões meritórias ou de provas. Ou seja; se não deve a Defesa fazer alusão a aspectos relacionados à inocência do imputado ou a fragilidade dos elementos de convicção que sugerem a sua participação no crime, também não deve o Estado se referir a gravidade do crime no momento de avaliar possível decretação ou manutenção de prisão cautelar.

 

A esmagadora maioria dos magistrados, mesmo ciente de que a gravidade do delito não deve ser invocada em sede de HC, paradoxalmente, utiliza a maior parte de suas decisões de indeferimento liminar, com trechos das denúncias onde constam os aspectos mais graves da imputação. Por conseguinte, raríssimas são às vezes em que se vê um Juiz deixar de levar alguém a prisão quando as circunstâncias apontam para um crime bárbaro.

 

É necessário se levar em conta que à exceção da lei dos crimes hediondos, hoje de aplicação bastante mitigada pelo Supremo Tribunal Federal, a gravidade do crime não deve consistir em dispositivo automático para ensejar a prisão de ninguém.

 

Aliás, é de se duvidar da legitimidade de toda e qualquer lei que, genericamente imponha a prisão cautelar ou proíba a liberdade provisória, baseando-se na abstrata gravidade do delito. Daí, não podendo o hermeneuta a ela se apoiar como se tratasse de elemento irrefutável para justificar a restrição da liberdade das pessoas. Por isso, dissinto da jurisprudência que, vez por outra, desrespeita a prerrogativa jurídica da liberdade, de assento constitucional, superprotegendo a todo custo à ordem pública e menosprezando o interesse privado. Nesse ponto, é valiosa a lição de Aury Lopes Jr ao ensinar:

 

² Assim: “A gravidade do crime imputado, um dos malsinados ‘crimes hediondos’ (Lei 8.072/90), não basta à justificação da prisão preventiva, que tem natureza cautelar, no interesse do desenvolvimento e do resultado do processo, e só se legitima quando a tanto se mostrar necessária: não serve a prisão preventiva, nem a Constituição permitiria que para isso fosse utilizada, a punir sem processo, em atenção à gravidade do crime imputado, do qual, entretanto, ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (CF, art. 5º, LVII).” (RTJ 137/287, Rel. Min. Sepúlveda Pertence)   
 
³ Bem a propósito Maria Lúcia Karam dissera: “(…) a lei não pode estabelecer prisões provisórias obrigatórias, nem pode proibir genericamente a liberdade provisória para todos os casos de acusações fundadas na alegada prática de determinado tipo de crime. ” KARAM, Maria Lúcia. Liberdade, Presunção de Inocência e Prisões Provisórias. Lúmen Juris, vol. 6. 2009, p. 42.
 

“A sociedade deve ser compreendida dentro da fenomenologia da coexistência, e não mais como um ente superior, de que dependem os homens que o integram. Inadmissível uma concepção antropomórfica, na qual a sociedade é concebida como um ente gigantesco, no qual os homens são meras células, que lhe devem cega obediência. Nossa atual Constituição e, antes dela, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, consagram certas limitações necessárias para a coexistência e não toleram tal submissão do homem ao ente superior, essa visão antropomórfica que corresponde a um sistema penal autoritário. Em suma, no processo penal, há que se compreender o conteúdo de sua instrumentalidade, recusar tais construções. ” (LOPES JR., Aury. Direito Processual e sua Conformidade Constitucional. Vol. I. Rio de janeiro: Lúmen Júris, 2007, p. 566/597).

 

Nessa linha, compartilho com o entendimento do Ministro Marco Aurélio de, considerar quanto mais grave o crime, maior a necessidade de se atentar para as garantias protetivas do imputado:

 

“pouco importa a gravidade da imputação, ou imputações. Até aqui, o paciente é simples acusado, muito embora com sentença contra si prolatada, mas que apenas implicou a submissão ao juiz natural, ao Tribunal do Júri. Aliás, quanto mais grave a imputação, maior deve ser o zelo na observância das franquias constitucionais” (HC/STF nº. 92.292, 1ª Turma. 12/05/09).

 

Tal posição acentua uma postura de vanguarda, não sujeita a um formalismo exagerado como se fosse o magistrado um positivista ortodoxo. Um legalista inveterado, de modo a ter que dar cumprimento a leis, sabidamente casuísticas ou oportunistas como a dos crimes hediondos que, de tão podada pela corte maior do país já não atende mais aos anseios de ninguém.

 

A toda evidência o Juiz não deve ser concebido como um Semideus, mas por julgar seus semelhantes possui uma característica singular, a de não poder errar somente pelo senso comum. Seu convencimento deve se esmerar em uma gama maior de conhecimentos, fruto de uma prudência aquilatada que a natureza do seu ofício o impõe. Deve pautar suas decisões na equidade, a partir da vivência que constrói das ciências que estuda e da sociedade que observa e faz parte.

 

3 – A questão do foragido versus a garantia de aplicação da lei penal

 

Outro problema é o da situação de foragido como motivo para a decretação da prisão preventiva ou sua manutenção ao fundamento da ‘garantia da lei penal’. Muitas vezes por preguiça de raciocínio, o julgador diante da notícia pura e simples de que o imputado se evadiu do distrito da culpa, decreta ou mantém a prisão preventiva, sem se dar ao trabalho de investigar a fundo, quais foram os motivos do individuo para se esconder da ação estatal.

 

A primeira crítica que se apresenta é a relacionada à própria consideração de foragido. É dizer; pode alguém que nunca foi preso ser considerado foragido? Segundo entendimento capitaneado pelo Ministro Cezar Peluso do STF, não. Para ele, só quem já foi preso e se evade do distrito da culpa para se furtar a aplicação da lei penal pode ser considerado foragido. No mais, o que há é a condição de revel ou de legítima defesa daquele que se esconde para demonstrar ser sua prisão injusta.

 

⁴ “a sujeição do juiz à lei já não é de facto, como no velho paradigma juspositivista, sujeição à lei somente quando válida, ou seja, coerente com a Constituição. E a validade já não é, no modelo constitucionalista-garantista, um dogma ligado à existência formal da lei, mas sua qualidade contingente ligada à coerência — mais ou menos opinável e sempre submetida à valoração do juiz — dos seus significados com a Constituição. Daí deriva que a interpretação judicial da lei é também sempre um juízo sobre a própria lei, relativamente à qual o juiz tem o dever e a responsabilidade de escolher somente os significados válidos, ou seja, compatíveis com as normas constitucionais substanciais e com os direitos fundamentais por elas estabelecidos”. (FERRAJOLI, Luigi, O direito como sistema de garantias, apud SILVA FRANCO, Alberto, O juiz e o modelo garantista, publicado no do Boletim IBCCRIM nº 56 – julho /1997
 

EMENTA: AÇÃO PENAL. Prisão preventiva. Decreto fundado em necessidade de garantia da ordem pública e aplicação da lei penal. Fundamentos ligados ao mero fato da revelia dos réus, tida como fuga. Inadmissibilidade. Razão que não autoriza a prisão cautelar. HC concedido. Inteligência dos arts. 5º, LVII, da CF, e 312 do CPP. Voto vencido. É ilegal o decreto de prisão preventiva que, a título de necessidade de garantia da ordem pública e de aplicação da lei penal, se baseia no só fato de o réu ser revel, tomando-o por fuga. (HC 94.759 – STF DJE 24.10.2008)

 

Assim, é de se ver não bastar à mera constatação objetiva da ausência do imputado no distrito da culpa, o que pode acontecer por inúmeros motivos, alguns, até escusáveis, embora, nem sempre perceptíveis à primeira vista. Daí, a prudência recomende não se denegar a ordem, sem antes fazer uma atenta investigação sobre qual a razão de ser, do endereço do imputado encontrar-se incorreto onde tramita seu processo, sob pena de, qualquer, fundamentação baseada em desaparecimento servir para justificar a sua prisão a pretexto de garantir a aplicação da lei penal:

 

“PREVENTIVA. NECESSIDADE DE INTIMAÇÃO DA SENTENÇA DE PRONÚNCIA. RÉU FORAGIDO. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ORDEM DENEGADA.


1. Não há constrangimento ilegal a ser sanado se o juiz, para assegurar a aplicação da lei penal, decreta a prisão preventiva do paciente, nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal.


2. No caso, o paciente encontra-se foragido há 1 ano, sem que tenha sido encontrado para ser intimado da sentença de pronúncia, inviabilizando o prosseguimento da ação penal.


3. Ordem denegada. ” (HC 94.671/SC – STJ, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima)

 

Para não se incorrer no risco da generalidade acima, onde não é permitido identificar como se chegou à situação de foragido. Convém, na dúvida, ou mesmo, quando não resta demonstrado pelo Estado que a fuga ocorreu para impedir a punição do crime, pois pode ter se dado só para impugnar o decreto prisional, – tido por injusto – a ordem deve ser concedida.

 

‘HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. EXTORSÃO. PRISÃO PREVENTIVA. FUNDAMENTAÇÃO. INIDONEIDADE. FUGA: AVALIAÇÃO, CASO A CASO.


1. Residência fora do distrito da culpa. Circunstância que não autoriza a prisão preventiva por conveniência da instrução criminal, especialmente porque o endereço do paciente é conhecido, o que viabiliza a expedição de carta precatória.
2. (…)
3. (…)
4. (…)
5. (…)
6. Fuga como justificativa da prisão cautelar para garantia da aplicação da lei penal. Necessidade de avaliá-la, caso a caso, para concluir-se se a intenção do paciente é frustrar o cumprimento da pena ou impugnar prisão que considera injusta.


7. Ausente, no caso, demonstração de que o paciente pretende subtrair-se à aplicação da lei penal.


Ordem concedida.’ (HC 91.971/RJ – STF, Rel. Min. Eros Grau)

 

Vale reforçar; quando o imputado foge do distrito da culpa, depois de ter tomado conhecimento do decreto de prisão preventiva e o faz para refutar a prisão porque a crê injusta é razoável que não se espere dele abrir mão de sua liberdade para, só depois, discutir a pertinência da medida constritiva. Não há que se falar em dever de colaborar com a justiça, sobretudo quando o próprio conceito de justiça constitui a base da controvérsia.

“o direito à fuga, sem violência, por aquele que, de forma procedente ou não, sinta-se alcançado por ato ilícito, à margem, portanto da ordem jurídica, surge como inerente ao homem, como um direito natural” (HC 84.934)

 

“agride a garantia da tutela jurisdicional exigir-se que, para poder questionar a validade da ordem de sua prisão, houvesse o cidadão de submeter-se previamente à efetivação dela” (HC 84.997-1/SP – STF, rel. Min. Cezar Peluso)

 

E, é bom não se perder de vista que a fuga apta a legitimar um decreto de prisão preventiva é aquela evidenciada por condutas reais, concretas e, sobretudo proativas do imputado (compra de bilhete de avião, encerramento de contas bancárias, dispensa de empregados, fechamento de empresa, venda de bens, preparação de bagagens, contratação de empresa de mudanças, etc) e não aquela fundada em meras presunções ou suposições do julgador. Cabendo ainda lembrar que a fuga sem violência a pessoa, por si mesma, não é crime. Não é uma conduta típica à luz do código penal, só o auxílio à fuga o é.

 

4 – A questão da (in)transcendência e da (in)ofensividade

 

O princípio da transcendência possui dupla acepção. A primeira à necessidade do individuo ter de se expressar através ações externas, quais sejam; aquelas que ultrapassem a esfera de seu pensamento e ganhe efetividade no mundo real e a segunda, diz respeito ao que lhe é contraposto, a necessidade do Estado só poder impor restrições, punições ou penas a quem realmente praticou o fato, não podendo alcançar terceiros. Nesta última acepção, conhecida como ‘princípio da intranscendencia das medidas restritivas de direito’, tem-se a proibição da pena ultrapassar a pessoa do culpado.

 

De outra monta, fala-se muito no princípio da ofensividade, de larga aplicação no Direito Penal e que é imprescindível para caracterizar a criminalização primária.

 

⁵ GOMES, Luiz Flávio. Fuga do agente e prisão preventiva. Jus navigandi, Teresina, ano 10, n°. 942, 31 jan. 2006. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7877. Acesso em 18 jun. 2010.
 
⁶ A promoção ou a facilitação a fuga de pessoa legalmente presa ou submetida a medida de segurança é crime (art. 351 do CP). Já, a fuga sem violência não constitui crime, pois típica é só a conduta consistente em: evadir-se ou tentar evadir-se o preso ou individuo submetido a medida de segurança detentiva, usando de violência contra pessoa (art. 352 do CP). No entanto, constitui falta grave (art. 50, II, da LEP), mesmo porque, o preso deve manter conduta oposta aos movimentos individuais ou coletivos de fuga ou de subversão à ordem ou à disciplina (art. 39, IV, da LEP). 
 

Pois bem, embora ambos sejam amplamente aplicados no Direito material, vejo-os irradiando efeitos também no âmbito processual. A lógica consiste em que, de acordo com o princípio (in) transcendência, o Juiz só pode decretar a prisão preventiva do imputado com base na: 1) conveniência da instrução criminal; na 2) garantia de aplicação da lei penal ou na 3) ordem pública (econômica) se a pessoa a ser presa houver dado causa a uma experiência sensível, algo observável e por isso mesmo, considerado ameaçador ao bem jurídico dessas instituições, sem o quê haverá mera conjectura ou adivinhação, destituída de valor jurídico.

 

É dizer, decisões do gênero: ‘decreto a prisão preventiva porque a personalidade do sujeito indica que ele pode ameaçar testemunhas’ (conveniência da instrução criminal) ou ‘pode evadir-se do distrito da culpa’ (garantia de aplicação da lei penal) ou ainda ‘pode retomar a prática criminosa’ (acautelar o meio social ou proteger a ordem pública) são fundamentações que afrontam o princípio da (in) transcendência, conquanto não possuam base empírica idônea. A liberdade do sujeito não pode ser suprimida com base na suposição do que se imagina ter o sujeito pensado ou desejado fazer se não chegou, ao menos, tentá-lo no mundo dos fatos.

 

Também não pode o Juiz aplicar uma medida restritiva de direito como a ‘privação da liberdade’ só porque ao individuo é atribuído um crime praticado no bojo de uma suposta organização criminosa, onde alguém – sem ser ele – fez algo que perturbou a conveniência da instrução criminal ou atentou contra a aplicação da lei penal, ou mesmo, causou insegurança à ordem pública.

 

Nesse ponto, a lição de Juarez Tavares:

 

“Embora óbvio, não parece demasia consignar que o que se prende cautelarmente são indivíduos e não organizações, sendo certo que o fato de ser ele integrante da mencionada organização não autoriza, por si só, a conclusão que sustenta o decreto prisional.” (HC 145382/RJ, Proc. nº. 2009/0163826-9 Parecer Subprocurador Geral da República – MPF)

 

Afinal, a organização criminosa é tão somente uma ficção jurídica insuscetível de misturar as personalidades dos sujeitos que a integram, os quais, por mais ajustados se encontrem sobre um mesmo propósito, sempre haverá a possibilidade de um deles ter agido por desígnio autônomo. Daí, não dever a prisão ser aferida de modo conjunto senão individual.

 

Por outro ângulo, tem-se o ‘princípio da ofensividade ou lesividade’ que, de acordo com Nilo Batista e Zaffaroni significa que: “nenhum direito pode legitimar uma intervenção punitiva quando não medeie, pelo menos, um conflito jurídico, entendido como a afetação de um bem jurídico total ou parcialmente alheio, individual ou coletivo (…)”. Daí porque, na extensão deste raciocínio, como emanação dos direitos e garantias constitucionais, entendo que tudo que acarrete punição/prisão, ainda que não se trate de ‘pena’ propriamente dita, exige um direito ferido ou exposto a perigo. Sem isso, haverá violação ao Estado de Direito Democrático com incorporação de regra moral ou ética em seu lugar.

 

Destaquei ‘na extensão do raciocínio de Nilo Batista e Zaffaroni’ porque esses autores se referiram ao princípio da lesividade no âmbito, estritamente penal (material), sendo minhas as ilações seguintes. E as fiz por um motivo simples, não tolero mais como possa o Estado-Juiz presumir do nada as reações psíquicas do preso que se encontra sob sua custódia, como se possuísse ele (o julgador) alguma propriedade extraordinária para afirmar a propensão do individuo em atentar contra um dos fundamentos do art. 312 do CPP.

 

Embora, tanto ao fundamento da conveniência da instrução criminal como ao da garantia de aplicação da lei penal se observe um conteúdo mais restrito que o da ordem pública que, de tão vasto, quase, tudo a incomoda. É necessário, sempre se procurar concretar a ofensa ao bem jurídico.

 

⁷ As personalidades podem ser semelhantes, mas nunca serão iguais. Pessoas de dada série, tipo, ordem ou arquétipo podem se parecer umas com as outras, mas nunca serão idênticas. A personalidade é aquele aspecto que conhecemos, e que nos capacita a identificar esse ser, em qualquer tempo futuro, a despeito da natureza e da extensão das mudanças na sua forma, na sua mente, ou no seu status espiritual. A reencarnação à ótica do livro de Urantia. (HTTP://www.elub.com.br/artigos/reencarnacao_2.htm).   
 
⁸ BATISTA, Nilo. ZAFFARONI, Eugenio Raul. Direito Penal – I. Editora Revan. 20
03, p. 226.
 
⁹Entende-se por ordem pública a situação e o estado de legalidade normal em que as autoridades exercem suas precípuas atribuições e os cidadãos as respeitam e acatam, sem constrangimento ou protesto. Ordem pública é a paz, a tranqüilidade no meio social. (TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado. Saraiva. 1992, p. 489. 
 
cação da lei penal não pareça difícil perceber que o bem jurídico protegido é a regular ‘administração da justiça’ (latu sensu). No que tange a ordem pública, a tarefa se complica mais um pouco, haja vista a difusão de seu conteúdo, pois nesta o bem jurídico corresponde à estabilidade da convivência social, algo difícil de ser singularizado.
 

De todo modo, em respeito ao princípio da ofensividade, deve a autoridade judiciária ao deferir uma prisão cautelar, não se furtar ao trabalho de apontar aonde no mundo dos fatos, existe a efetiva ofensa ou ameaça a tais instituições (conveniência da instrução criminal; garantia de aplicação da lei penal e/ou à ordem pública). Essa providência, tanto fortalece a decisão judicial, como fortalece o Direito de Defesa do imputado, pois traz segurança jurídica para os interesses contrapostos.

 

5 – Balanço final: Estado versus Direito de Defesa

 

Face ao exposto, enfatizo a hipocrisia do discurso da prisão preventiva, título desta dissertação, porque não vejo no Brasil congruência nos métodos de sua aplicação. Acredito haver até, certo, desequilíbrio no embate forense da matéria. Lembro que quando o Ministério Público defende a segregação cautelar de alguém e o Juiz a acolhe, dificilmente a Defesa do imputado consegue discutir sua (im)pertinência sem se deparar com intensa exposição de aspectos já subsumidos no tipo penal ou atrelados à própria conduta descrita na denúncia, embora, esses aspectos nem devessem guardar importância para a solução da controvérsia.

 

O fato de se dizer que a prisão preventiva se justifica para garantir a eficácia do provimento final condenatório (fumus boni iuris) só é correto quando ela (a prisão) for, de fato, o único meio de garanti-la.

 

Nada de errado há em se ver alguém condenado que passou toda a instrução processual solto e nem, o inverso, ver alguém absolvido que passou toda a instrução processual preso, mas o pior de tudo é ver Juízes ignorando que uma possível (ou provável) condenação não deve guardar por si só relação com a restrição da liberdade de ninguém, antes da sentença. O estado de normalidade processual deve sugerir a liberdade do réu e não o contrário. A prisão nunca pode ser considerada um fato natural, senão um mal necessário.

 

Entretanto, a impressão que se tem é a de que, uma vez processado, a liberdade ou não do imputado dependerá da habilidade do acusador descrever o fato criminoso. Quanto mais adjetivos, aspectos ou circunstâncias negativas forem desferidos contra o acusado, mais difícil será manter a sua liberdade e, se preso, ele já tiver sido, mais demorado será retomar a sua liberdade. É como se houvesse com o oferecimento da denúncia, também a proposição de uma condenação virtual à Defesa do réu, no sentido de obrigá-la a ter de, sempre que reivindicar a liberdade de seu cliente, rever no bojo das decisões denegatórias, os mesmos fragmentos da denúncia que enfatizam as circunstâncias mais graves desferidas contra o acusado. Uma covardia!

 

O sistema processual é tão falho quanto sedutor ao leigo e a imprensa sensacionalista, pois por mais técnico que seja o discurso de Defesa, ela nunca consegue se afastar muito da conduta incriminada. E, mesmo não precisando e até não devendo ser a ação do imputado lembrada com eloquência no trato de uma pretensa revogação de prisão cautelar, quando o é pelo órgão ministerial ou mesmo pelo Magistrado Relator de um HC, por exemplo, costuma sensibilizar negativamente a mídia e, por conseguinte, a opinião pública. Conseqüência: a reconquista da liberdade nessas circunstancias é, quase um sortilégio.

 

O processualista brasileiro, infelizmente não é nada fiel a alguns princípios constitucionais fundamentais como os da não-culpabilidade ou estado de inocência. A mão frouxa de alguns magistrados na garantia de aplicação desses princípios tem contribuído para a desarmonia do tema ‘prisão preventiva’.

 

Os Juízes de teto não podem se deixar enganar pelas fundamentações multi-utilitaristas dos Juízes de piso. Fundamentos que servem para qualquer decisão onde se pretenda mandar alguém para cadeia ou lá deixá-lo precisam ser combatidos com veemência. Toda decisão tem de estar voltada para o caso concreto e nela, não deve haver menção as inferências tiradas pelo titular da ação penal, sob pena de afrontar o estado de inocência, antecipando um juízo meritório, impertinente na discussão processual.

 

Do ponto de vista técnico, aliás, é muito mais apropriado se decretar uma prisão preventiva baseando-se somente em circunstâncias processuais, – de preferência verificadas após a prática delituosa – que fazê-lo com base na própria conduta imputada já objeto de persecução penal.

Não basta escrever uma centena de livros, ser um conferencista famoso e não se fazer nada do que em suas obras defende quando, diante de si, tem um caso concreto. O ditado popular: ‘faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço’, não pode ter abrigo aqui. A bola da vez está com a Magistratura, só ao Juiz cabe intervir para colocar as coisas nos eixos, sequer ao legislador se deve esperar uma solução, mesmo porque a solução legislativa, nestes casos, só costuma engessar a operatividade do sistema.

 

Acredito no responsável poder discricionário do Juiz para combater a hipocrisia do discurso da prisão cautelar no Brasil. Não é possível mais fechar os olhos para a banalização da prisão preventiva, vendo-a ser aplicada sob o título de exceção, mas com contumácia regular. É preciso que cada Juiz faça uma autocrítica de sua atividade jurisdicional. Confrontar as vezes que decidiu conforme a essência de suas convicções, com outras onde decidiu para não frustrar posicionamentos em voga no âmbito de certos poderes, pode ser um bom começo para mudar este panorama.

 

A prisão preventiva ou a sua antítese, a liberdade provisória, não pode continuar sendo tratada nas ‘salas de aula’, de forma muito diferente do que se depreende das ‘salas de audiência’. Chega de discursos de retórica, ou melhor, chega de hipocrisia mesmo!

 

Bibliografia

 

¹⁰ Poderes porque, de certo modo e em certa medida: toda introdução de ordem acarreta algum tipo de poder e dominação. PUGLIESI, Márcio. Primeiras reflexões sobre método e um novo conceito de sujeito. Revista Brasileira de Filosofia. Editora Revista dos Tribunais, volume 232. 2009, p. 288.
 

BATISTA, Nilo. ZAFFARONI, Eugenio Raul. Direito Penal – I. Editora Revan. 2003.

 

BURCKHARDT, Titus. Le Paysage dans I’Art extreme-oriental in Príncipes ET Méthodes de I’ Art. Sacré, p. 187, Dervy-Livres, Paris, 1976 (Trad. Luiz Pontual).

 

FERRAJOLI, Luigi, O direito como sistema de garantias, apud SILVA FRANCO, Alberto, O juiz e o modelo garantista, publicado no do Boletim IBCCRIM nº 56 – Julho /1997.

 

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KARAM, Maria Lúcia. Liberdade, Presunção de Inocência e Prisões Provisórias. Lumen Juris, vol. 6. 2009.

 

LOPES JR., Aury. Direito Processual e sua Conformidade Constitucional. Vol. I. Rio de janeiro: Lúmen Júris. 2007.

 

PUGLIESI, Márcio. Primeiras reflexões sobre método e um novo conceito de sujeito. Revista Brasileira de Filosofia. Editora Revista dos Tribunais, volume 232. 2009.

 

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado. Saraiva. 1992.