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A HIPOCRISIA DO DISCURSO DA PRISÃO PREVENTIVA

Walter Arnaud Mascarenhas jr
Mestre em Ciências Penais/Criminologia
pela UCAM/RJ, membro da Comissão de
Direito Penal do IAB e Advogado criminalista

 

Sumário: Introdução – 1. A questão do ‘mérito’ ou ‘exame de provas’ e a via estreita do habeas corpus – 2. A questão da gravidade do delito versus a legislação penal – 3. A questão do foragido versus a garantia de aplicação da lei penal – 4. A questão da (in)transcendência e da (in)ofensividade – 5. Balanço final: Estado versus Direito de Defesa.

Resumo: O instituto da prisão preventiva há muito é palco de calorosas discussões e boa parte dos operadores do Direito com alguma vivência no Processo Penal compartilham das principais idéias para a sua correta aplicação. Assim, não são novos os discursos contra a falta ou a deficiência da fundamentação no ato de sua decretação. Seus pressupostos e requisitos são bem conhecidos de todos: alunos, professores, jurisconsultos, advogados, defensores, delegados, promotores e magistrados, ninguém duvida de seus exatos contornos. Entretanto, estranhamente, na práxis processual da Justiça criminal de 1º e 2º graus de todo o país, o que se revela é uma completa desarmonia. Este trabalho visa investigar porque isso acontece; quais são os mistérios que governam esses desacertos se, aparentemente, todos concordam com suas ideias reitoras.

Palavras-chaves: Prisão preventiva – Liberdade provisória – Gravidade do delito – Habeas corpus – Garantismo penal.

Abstract: The institute of preventive custody has been for a long time a stage of heated discussions, and a good number of Attorneys, with some experience in Penal Proceeding, share the main ideas for its correct enforcement. Therefore, the speeches against the lack or insufficiency of grounds in the act of their decreeing are not new. Their assumptions and requirements are well known by all: students, professors, jurisconsults, attorneys, defense attorneys, delegates, public prosecutors and magistrates, no one question their exact contours. However, in the procedural praxis of criminal justice of 1st. and 2nd. degrees all over Brazil, what we find is a complete lack of harmony. This work aims at investigating why this happens, and which are the mysteries governing such errors, when apparently everyone agrees with its major ideas.

Key Words: Preventive Custody; Release on Own Recognizance; Offense Seriousness; Habeas Corpus; Penal Guarantism.

Área do Direito: Penal – Processo Penal

 

Introdução: A Constituição Federal da República do Brasil proclama em seu artigo 5º (LXVI) que: “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança. ” Daí, decorre a certeza de que a prisão preventiva é exceção, cuja a regra é a liberdade provisória.

Atualmente, embora ninguém mais duvide dos efeitos colaterais da prisão preventiva dentro do ordenamento jurídico, ainda se percebe certa reminiscência de ordem política em contestá-la, notadamente nos anais da imprensa e de certos seguimentos da sociedade civil. Muitos formadores de opinião apregoam o fortalecimento da prisão preventiva como mecanismo de Defesa Social. Para este grupo, o recrudescimento da lei e do poder de polícia são decorrências lógicas e naturais.

Neste compasso, a tensão entre os que incentivam a extensão do uso da prisão cautelar contra aqueles que a limitam é notável nos discursos políticos, nos artigos especializados, nas entrevistas com autoridades, artistas e também no âmbito acadêmico, próprio das Ciências Sociais ou Humanas.

Quem nunca se deparou após um crime bárbaro, de grande repercussão na mídia com discursos do gênero: isso aconteceu porque a lei é fraca! No Brasil, a pessoa comete um crime agora e daqui a pouco já está na rua de novo!

Da mesma forma, também é corriqueiro se ver gente falando, exatamente o contrário, tipo: o problema criminal não é um problema de lei, mas de cultura ou educação! É um absurdo ter de manter alguém preso, enquanto dura o processo em um país onde os processos se arrastam indefinidamente!

Pois bem, envoltos neste cabo de guerra os dois grupos, mesmo, possuindo relevantes aspectos positivos e negativos por estarem fundados sobre bases bem definidas e fáceis de serem identificadas, não constituem ainda o tema-foco deste trabalho.

Minha preocupação reside em uma questão bem mais nebulosa e porque não dizer, dissimulada. Refiro-me aos adeptos do segundo grupo, dos que ostentam a mesma bandeira, qual seja: a do uso comedido da prisão preventiva. Defendem a liberdade provisória como regra e proclamam o respeito ao Estado Democrático de Direito e ao Garantismo Penal, cujo grupo, muitas vezes, é o mesmo que se vê lecionando nas melhores universidades do país e se encontra no exercício do poder judicante pautando as decisões mais importantes do Brasil.

Aliás, nos cursos preparatórios para as grandes carreiras jurídicas é corriqueiro o discurso de que a prisão preventiva deve ser manejada com toda moderação possível, devendo se subordinar ao binômio necessidade/utilidade e sempre guardar correspondência aos ditames do art. 312 do Código de Processo Penal.

Entretanto, não raro se percebe uma espécie de força motriz atuar nas ‘mãos’ que redigem as manifestações do MP e as decisões judiciais de 1º e 2º graus fazendo com que muitos pleitos de revogação de prisão preventiva, embora bem formulados e calcados sobre decretos desprovidos de suporte idôneo, sejam rechaçados liminarmente.

Ora, se por trás dessas decisões estão às mesmas autoridades das salas de aula; mestres e doutores em Ciências Penais que professam a liberdade provisória como uma das manifestações mais importantes do Devido Processo Legal porque será que não é reproduzido no Judiciário o mesmo discurso das salas de aula?

Há tempos percebo que para além do conhecimento técnico jurídico existe uma ideologia camuflada, não admitida pelas autoridades constituídas. Algo presente no subconsciente coletivo das autoridades que detêm o poder de decisão. Algo que, certamente não decorre de má-fé, mas de um sentimento que não pode ser traduzido por palavras e, muito menos, pode ser escrito porque contrastaria com os grandes tratados e com as decisões pretorianas de vulto histórico e filosófico.

É a respeito desta vexata quaestio que pretendo discorrer, procurando vislumbrar um ponto de fuga para certos julgadores onde, em vez de, admitirem a presença dos requisitos para a revogação de uma prisão cautelar e conceder a liberdade, acabam ou distorcendo completamente os pedidos que lhes são feitos ou aplicando uma fundamentação mais apropriada ao ponto de vista contrário ao que se dizem defensores. Resultado: A decisão é, quase sempre, injusta ou incoerente.

E nos arredores dos tribunais? Vive-se um mundo de faz de conta, onde teoria e prática não se harmonizam, assim como lei e fato não se integram. Os advogados fazem de conta que seus clientes são ‘bonzinhos’ ou ‘inocentes’, não praticaram o crime nas circunstâncias da denúncia, enquanto os julgadores fazem de conta que essas questões ‘não têm a menor importância’ para a concessão da liberdade, pois estão relacionadas ao meritum causae. Da mesma forma, a jurisprudência faz de conta que não contempla a gravidade do crime como empecilho para a concessão de liberdade provisória porque a lei já a considera quando da fixação dos parâmetros da reprimenda penal.

Enquanto isso, os advogados fazem de conta que acreditam (…) e por aí vão tantas e tantas outras ilusões do gênero. Tentarei enfrentar só algumas delas.

1– A questão do ‘mérito’ ou ‘exame de provas’ e a ‘via estreita’ do habeas corpus.

 

¹ Uma certa escola moderna de psicologia define o ‘subconsciente coletivo’ como uma entidade que a investigação científica não poderia atingir diretamente, – já que o inconsciente não pode, como tal, tornar-se consciente, – mas cujas disposições latentes, abusivamente chamadas de ‘arquétipos’, podem ser inferidas de certas ‘erupções’ irracionais da alma (…) BURCKHARDT, Titus. Le Paysage dans I’Art extreme-oriental in Príncipes ET Méthodes de I’ Art. Sacré, p. 187, Dervy-Livres, Paris, 1976 (Trad. Luiz Pontual)
 

Qual militante da área criminal nunca viu uma Ementa que contivesse o seguinte: “A estreita via do HC não comporta exame do mérito da imputação”, ou então; “Não cabe exame de provas nos limites do HC”.

Certamente, todo mundo já viu e nem precisa impetrar HC ou chegar ao 2º grau de jurisdição para ver decisões salientando não se confundirem o mérito, atrelado ao direito substancial com questões instrumentais como são as relativas à prisão cautelar. Tal assertiva tem a sua razão de ser na própria natureza dos institutos, o Direito Penal como Ciência que aborda os crimes em espécie e o Direito Processual Penal como instrumento ou meio para dar exequibilidade a quem realizou a conduta típica.

Assim, também não resta duvida que sendo o HC uma via de cognição sumária, seu âmbito não pode abarcar uma investigação de conteúdo aprofundado, pois para isto existe o próprio Processo Penal, devidamente estruturado para acolher todas as discussões atinentes ao crime e as suas circunstâncias. O problema é que o desrespeito a noção de que o habeas corpus não deve servir para adentrar ao mérito ou analisar provas, não constitui um erro exclusivo dos impetrantes é mais comum do que se pensa, também entre os próprios julgadores.

É dizer: a Defesa quando deduz um pedido de revogação de prisão preventiva e o faz com base no mérito ou nas provas produzidas no processo é, sempre, chamada à atenção, merecendo o indeferimento do pleito acompanhado de certa lição acadêmica.

Nesse sentido:

HABEAS CORPUS – CRIMINAL – ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. – EXAME APROFUNDADO DO MÉRITO E DA PROVA NO WRIT. IMPOSSIBILIDADE – RELEV NCIA DA PALAVRA DA VÍTIMA – PRECEDENTES ORDEM DENEGADA.

1- O habeas corpus não comporta exame aprofundado da prova e do mérito da imputação.

2- A palavra da vítima é de alta relevância nos crimes de estupro e atentado violento ao pudor, cometidos na clandestinidade. (Precedentes).

3- Ordem denegada. (HC nº 66.651/SP – 2006/0204474-0)

“A ação de habeas corpus constitui remédio processual inadequado, quando ajuizada com objetivo (a) de promover a análise da prova penal, (b) de efetuar o reexame do conjunto probatório regularmente produzido, (c) de provocar a reapreciação da matéria de fato e (d) de proceder à revalorização dos elementos instrutórios coligidos no processo penal de conhecimento. ” (HC nº 69.780 – STF)

Todavia, o mesmo equívoco não é difícil de ocorrer por parte do Estado, isto é, quando o Juiz denega o pedido em sede de HC ou no âmbito do processamento da causa. Chegando a ser até frequente ver decisões indeferindo pedido de revogação de prisão preventiva, onde o fundamento utilizado se mistura com questões meritórias ou de prova. O curioso é que, muitas vezes, mesmo cônscio do equívoco, o julgador não perde o hábito professoral de opor conceituações corretas do ponto de vista técnico, mas nem por ele mesmo observadas na hipótese sub examen. É o exemplo abaixo:

“A prisão preventiva se revela como medida de natureza cautelar de caráter excepcional, só podendo ser decretada nos casos em que, havendo prova da existência do crime e indício suficiente de autoria, estiverem presentes os requisitos autorizadores, previstos no art. 312 do CPP.
(…)
No presente caso, narra a peça acusatória a existência de uma poderosa organização criminosa, especializada no comércio ilícito de substância entorpecente entre países da América do Sul e da Europa, assim como na ocultação dos lucros auferidos com esta atividade criminosa mediante a aquisição de postos de gasolina e investimentos na indústria petroquímica, de molde a caracterizar o crime de lavagem de dinheiro de que trata o artigo 1º, I, da lei nº 9.613/98.
Relata a inicial que a droga comercializada pela organização era produzida na Colômbia, saindo de lá para o Uruguai, de onde era enviada para a Espanha – ponto de partida para a distribuição aos demais países da Europa – e para os Estados Unidos da América. O dinheiro então arrecadado retornava ao Uruguai, em vôos comerciais, onde os integrantes da quadrilha transportavam milhões de euros e dólares, ingressando, posteriormente no território nacional, mediante transferências supostamente legais, já que os denunciados tomavam o cuidado de obter autorização do BACEN para investimentos em indústrias petroquímicas, postos de gasolina e empresas cujo proprietário de fato era o denunciado XXXXXXXX, apontado pelas investigações como o chefe da organização criminosa.
(…)
Com efeito, a denúncia revela fortes indícios de que a acusada XXXXXXX praticava atos de administração dos postos de gasolina adquiridos pela quadrilha, figurando no estatuto social de diversas empresas de propriedade da organização criminosa, denotando efetiva atuação nas práticas de lavagem de dinheiro, tendo sido constatado vínculo de seu nome com os dados registrais de várias contas bancárias de titularidades dos postos pertencentes à organização (…)
Isto é o que se constata do monitoramento dos terminais telefônicos por ela utilizados, que permite inferir sua participação nos “negócios” da quadrilha, conforme se extrai dos seguintes diálogos:
(…)
Como se infere dos diálogos acima transcritos, não se trata de pré-julgamento ou antecipação de cumprimento da pena, mas sim de retirar do convívio social elemento completamente inserido dentro de organização criminosa com tentáculos em vários países, altamente organizada e que necessita ser urgentemente desmantelada, preservando-se a ordem pública, já que não se tem dúvidas de que o tráfico internacional de entorpecentes é delito que dispensa maiores dissertações a respeito da grave ameaça que representa para a segurança pública e a paz social.

Igualmente, não se está aqui a fundamentar decisão de 1º grau, mas sim de reconhecer que embora sucinta, a decisão monocrática não padece de qualquer vício e encontra seu respaldo nos elementos constantes dos autos, os quais evidenciam a presença dos requisitos do art. 312 do CPP, autorizadores da prisão preventiva decretada. Pelo exposto, DENEGO A ORDEM. ” (HC nº 2007.02.01.005068-3 TRF/RJ)

A decisão acima incide justamente naquilo que ela mesma faz questão de negar, isto é, de que não está fazendo um ‘pré-julgamento ou antecipação de cumprimento da pena’ ou ainda, ‘fundamentando a decisão de 1º grau’.

Ora, é claro que está fazendo tudo isso ‘sim’. Este é um caso clássico de supressão de instância ou usurpação do poder judicante de 1º grau. O Tribunal não podia se imiscuir a fazer considerações de prova, transcrevendo diálogos de interceptação telefônica e precipitando considerações acerca do modus operandi da suposta organização criminosa. Se não deve o impetrante adentrar no exame de mérito e na análise de provas quando impetra uma ordem de habeas corpus, também não deve o Estado-Juiz fundamentar suas decisões com base nestes mesmos elementos para rechaçar o pedido.

Como se não bastasse, existe, ainda, o problema do desrespeito a via de cognição sumária por onde todo HC deve ter curso. Já vi Juiz apontar a deficiência do decreto de prisão provisória e, em vez de deferir o pedido de medida liminar dar nova chance para a autoridade coatora fundamentar a necessidade da prisão preventiva. Uma providência incompatível com a natureza do HC:

“(…) é de se ver que o decreto judicial que acolheu o pedido ministerial e decretou a prisão preventiva do paciente carece da necessária fundamentação, uma vez que a mera justificação de que “presentes seus pressupostos” não preenche os requisitos legais de fundamentação específica ao caso concreto. Não bastasse isso, a decisão que a esta sucedeu, pela qual a denúncia foi recebida, também não traz nenhuma explicação dos motivos pelos quais a prisão preventiva deve ser mantida (…)

De qualquer forma, considerando-se que descabe a este juízo de segunda instância proceder originalmente a adequada análise da necessidade desta prisão preventiva, apresentando os fundamentos que a sustentam, até porque se assim o fosse, suprimindo estaria um grau de jurisdição para o paciente, e ainda considerando-se que a primeira decisão adotada (a que decretou a preventiva) se deu em sede de plantão no dia 28.03.2007, o que inviabiliza muitas vezes uma escorreita e adequada análise do caso, determino que se oficie o ilustre juízo impetrado para que este, no prazo de 48h (quarenta e oito horas), não apenas preste as informações cabíveis como fundamente adequadamente a necessidade da prisão preventiva decretada” (HC nº 5051.2007.02.01.003968-7 TRF/RJ)

Eis aí uma decisão inquinada por um estrondoso error in procedendo, à medida que, subverteu a dinâmica procedimental do HC. Permitiu ao Estado errar duas vezes à custa do sacrifício do paciente, pois em lugar de desonerá-lo com o deferimento da liminar e conseqüente concessão de sua liberdade permitiu a autoridade coatora fundamentar, outra vez, a decisão de mantê-lo preso. Fato que, ao menos, não passou despercebido pela corte suprema quando tomou conhecimento do assunto:

“(…) Percebe-se claramente que a situação do paciente daquele habeas corpus foi agravada pelo despacho do juiz convocado do TRF da 2ª Região. Este, apesar de reconhecer a fragilidade do decreto prisional, diga-se de passagem, comum a todos os envolvidos determinou ao juízo de origem que fundamentasse adequadamente a decisão, quando o certo seria conceder a liminar. Em outras palavras, viabilizou-se, em habeas corpus, de forma esdrúxula, a oportunidade de reformatio in pejus (…)” (HC nº 93.803-5/RJ – STF. DJE 11.09.2008, Rel. Min. Eros Grau)

A expressão ‘esdrúxula’ acima utilizada bem retrata o quão terrível foi à decisão porque nela, expressamente, se permitiu unir duas coisas entre si distintas e inconfundíveis, a fundamentação com as informações, pois é lógico que a fundamentação há de ser, sempre, anterior a efetivação da prisão. Deve constar do decreto de prisão como sendo o elemento que justifica a restrição da liberdade alheia. Enquanto, as informações hão de vir sempre posteriores ao decreto, visam, só, esclarecer eventuais duvidas à autoridade judiciária superior a quem é endereçada. Sendo, por isso, dispensáveis. Tendo o STF há muito tempo ensinado que:

“As informações não substituem a fundamentação exigida em lei. Não há despacho, decisão ou sentença que adote fundamentação a posteriori, depois de produzir efeitos” (HC nº. 44.499, 2ª Turma, Rel. Min. Evandro Lins e Silva, DJ de 23/2/68) “O despacho que decreta a prisão preventiva, quando falho, não se considera sanado por fundamentação suplementar, depois de haver produzido efeitos” (HC nº. 56.900, 1ª Turma, Rel. Min. Rafael Mayer, DJ de 27/4/79).

Pena que passados, quase, meio século, da advertência que subjaz deste entendimento jurisprudencial, poucos sejam os Juízes que a observam.

2 – A questão da gravidade do delito versus a legislação penal

 

Também é cediço nos tribunais superiores que a gravidade do crime, por si só, não é o bastante para fundamentar uma prisão cautelar.

“A prisão preventiva para a garantia da ordem pública, fundada na gravidade do delito e na necessidade de acautelar o meio social, não encontra respaldo na jurisprudência deste Tribunal” (Gilmar Mendes. Min. do STF)

Embora, hoje, pacífico na doutrina e na mais alta corte de Justiça do país, muitos juízes continuam teimando em decretar prisões, movidos, unicamente pela revolta que a violência do crime induz.

“O inquérito policial demonstra que os acusados se concentraram para a prática do crime patrimonial narrado na denúncia, empregando para tal arma de fogo, situação que, por si só, autoriza a concluir pelo risco que os mesmos apresentam à sociedade se mantidos soltos”. (Proc. nº. 2009.204.001001-0/1ª Vara Criminal de Bangu – RJ)

A decisão em destaque representa exemplo típico de como não se deve fundamentar uma prisão cautelar. A fragilidade da argumentação assusta porque não agrega nenhum elemento válido. A gravidade do crime que, em tese, deve servir como aspecto para qualificar a pena ou sopesar o juízo de culpabilidade é, aqui, antecipada para o âmbito processual dando à prisão provisória uma conotação de prisão pena. Assim, o emprego de arma de fogo acabou assumindo uma feição irremediável ou implacável. A gravidade do crime operou o comprometimento, em definitivo, da conduta do individuo, impedindo-o corrigir-se depois, com uma postura conforme o devido processo legal, o que seria o mais desejável já que todo o juízo de cautelaridade deve ser estritamente instrumental e não um fim em si mesmo.

Vale para a gravidade do crime a mesma crítica feita com relação às questões meritórias ou de provas. Ou seja; se não deve a Defesa fazer alusão a aspectos relacionados à inocência do imputado ou a fragilidade dos elementos de convicção que sugerem a sua participação no crime, também não deve o Estado se referir a gravidade do crime no momento de avaliar possível decretação ou manutenção de prisão cautelar.

A esmagadora maioria dos magistrados, mesmo ciente de que a gravidade do delito não deve ser invocada em sede de HC, paradoxalmente, utiliza a maior parte de suas decisões de indeferimento liminar, com trechos das denúncias onde constam os aspectos mais graves da imputação. Por conseguinte, raríssimas são às vezes em que se vê um Juiz deixar de levar alguém a prisão quando as circunstâncias apontam para um crime bárbaro.

É necessário se levar em conta que à exceção da lei dos crimes hediondos, hoje de aplicação bastante mitigada pelo Supremo Tribunal Federal, a gravidade do crime não deve consistir em dispositivo automático para ensejar a prisão de ninguém.

Aliás, é de se duvidar da legitimidade de toda e qualquer lei que, genericamente imponha a prisão cautelar ou proíba a liberdade provisória, baseando-se na abstrata gravidade do delito. Daí, não podendo o hermeneuta a ela se apoiar como se tratasse de elemento irrefutável para justificar a restrição da liberdade das pessoas. Por isso, dissinto da jurisprudência que, vez por outra, desrespeita a prerrogativa jurídica da liberdade, de assento constitucional, superprotegendo a todo custo à ordem pública e menosprezando o interesse privado. Nesse ponto, é valiosa a lição de Aury Lopes Jr ao ensinar:

² Assim: “A gravidade do crime imputado, um dos malsinados ‘crimes hediondos’ (Lei 8.072/90), não basta à justificação da prisão preventiva, que tem natureza cautelar, no interesse do desenvolvimento e do resultado do processo, e só se legitima quando a tanto se mostrar necessária: não serve a prisão preventiva, nem a Constituição permitiria que para isso fosse utilizada, a punir sem processo, em atenção à gravidade do crime imputado, do qual, entretanto, ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (CF, art. 5º, LVII).” (RTJ 137/287, Rel. Min. Sepúlveda Pertence)   
 
³ Bem a propósito Maria Lúcia Karam dissera: “(…) a lei não pode estabelecer prisões provisórias obrigatórias, nem pode proibir genericamente a liberdade provisória para todos os casos de acusações fundadas na alegada prática de determinado tipo de crime. ” KARAM, Maria Lúcia. Liberdade, Presunção de Inocência e Prisões Provisórias. Lúmen Juris, vol. 6. 2009, p. 42.
 

“A sociedade deve ser compreendida dentro da fenomenologia da coexistência, e não mais como um ente superior, de que dependem os homens que o integram. Inadmissível uma concepção antropomórfica, na qual a sociedade é concebida como um ente gigantesco, no qual os homens são meras células, que lhe devem cega obediência. Nossa atual Constituição e, antes dela, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, consagram certas limitações necessárias para a coexistência e não toleram tal submissão do homem ao ente superior, essa visão antropomórfica que corresponde a um sistema penal autoritário. Em suma, no processo penal, há que se compreender o conteúdo de sua instrumentalidade, recusar tais construções. ” (LOPES JR., Aury. Direito Processual e sua Conformidade Constitucional. Vol. I. Rio de janeiro: Lúmen Júris, 2007, p. 566/597).

Nessa linha, compartilho com o entendimento do Ministro Marco Aurélio de, considerar quanto mais grave o crime, maior a necessidade de se atentar para as garantias protetivas do imputado:

“pouco importa a gravidade da imputação, ou imputações. Até aqui, o paciente é simples acusado, muito embora com sentença contra si prolatada, mas que apenas implicou a submissão ao juiz natural, ao Tribunal do Júri. Aliás, quanto mais grave a imputação, maior deve ser o zelo na observância das franquias constitucionais” (HC/STF nº. 92.292, 1ª Turma. 12/05/09).

Tal posição acentua uma postura de vanguarda, não sujeita a um formalismo exagerado como se fosse o magistrado um positivista ortodoxo. Um legalista inveterado, de modo a ter que dar cumprimento a leis, sabidamente casuísticas ou oportunistas como a dos crimes hediondos que, de tão podada pela corte maior do país já não atende mais aos anseios de ninguém.

A toda evidência o Juiz não deve ser concebido como um Semideus, mas por julgar seus semelhantes possui uma característica singular, a de não poder errar somente pelo senso comum. Seu convencimento deve se esmerar em uma gama maior de conhecimentos, fruto de uma prudência aquilatada que a natureza do seu ofício o impõe. Deve pautar suas decisões na equidade, a partir da vivência que constrói das ciências que estuda e da sociedade que observa e faz parte.

3 – A questão do foragido versus a garantia de aplicação da lei penal

 

Outro problema é o da situação de foragido como motivo para a decretação da prisão preventiva ou sua manutenção ao fundamento da ‘garantia da lei penal’. Muitas vezes por preguiça de raciocínio, o julgador diante da notícia pura e simples de que o imputado se evadiu do distrito da culpa, decreta ou mantém a prisão preventiva, sem se dar ao trabalho de investigar a fundo, quais foram os motivos do individuo para se esconder da ação estatal.

A primeira crítica que se apresenta é a relacionada à própria consideração de foragido. É dizer; pode alguém que nunca foi preso ser considerado foragido? Segundo entendimento capitaneado pelo Ministro Cezar Peluso do STF, não. Para ele, só quem já foi preso e se evade do distrito da culpa para se furtar a aplicação da lei penal pode ser considerado foragido. No mais, o que há é a condição de revel ou de legítima defesa daquele que se esconde para demonstrar ser sua prisão injusta.

⁴ “a sujeição do juiz à lei já não é de facto, como no velho paradigma juspositivista, sujeição à lei somente quando válida, ou seja, coerente com a Constituição. E a validade já não é, no modelo constitucionalista-garantista, um dogma ligado à existência formal da lei, mas sua qualidade contingente ligada à coerência — mais ou menos opinável e sempre submetida à valoração do juiz — dos seus significados com a Constituição. Daí deriva que a interpretação judicial da lei é também sempre um juízo sobre a própria lei, relativamente à qual o juiz tem o dever e a responsabilidade de escolher somente os significados válidos, ou seja, compatíveis com as normas constitucionais substanciais e com os direitos fundamentais por elas estabelecidos”. (FERRAJOLI, Luigi, O direito como sistema de garantias, apud SILVA FRANCO, Alberto, O juiz e o modelo garantista, publicado no do Boletim IBCCRIM nº 56 – julho /1997
 

EMENTA: AÇÃO PENAL. Prisão preventiva. Decreto fundado em necessidade de garantia da ordem pública e aplicação da lei penal. Fundamentos ligados ao mero fato da revelia dos réus, tida como fuga. Inadmissibilidade. Razão que não autoriza a prisão cautelar. HC concedido. Inteligência dos arts. 5º, LVII, da CF, e 312 do CPP. Voto vencido. É ilegal o decreto de prisão preventiva que, a título de necessidade de garantia da ordem pública e de aplicação da lei penal, se baseia no só fato de o réu ser revel, tomando-o por fuga. (HC 94.759 – STF DJE 24.10.2008)

Assim, é de se ver não bastar à mera constatação objetiva da ausência do imputado no distrito da culpa, o que pode acontecer por inúmeros motivos, alguns, até escusáveis, embora, nem sempre perceptíveis à primeira vista. Daí, a prudência recomende não se denegar a ordem, sem antes fazer uma atenta investigação sobre qual a razão de ser, do endereço do imputado encontrar-se incorreto onde tramita seu processo, sob pena de, qualquer, fundamentação baseada em desaparecimento servir para justificar a sua prisão a pretexto de garantir a aplicação da lei penal:

“PREVENTIVA. NECESSIDADE DE INTIMAÇÃO DA SENTENÇA DE PRONÚNCIA. RÉU FORAGIDO. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ORDEM DENEGADA.

1. Não há constrangimento ilegal a ser sanado se o juiz, para assegurar a aplicação da lei penal, decreta a prisão preventiva do paciente, nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal.

2. No caso, o paciente encontra-se foragido há 1 ano, sem que tenha sido encontrado para ser intimado da sentença de pronúncia, inviabilizando o prosseguimento da ação penal.

3. Ordem denegada. ” (HC 94.671/SC – STJ, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima)

Para não se incorrer no risco da generalidade acima, onde não é permitido identificar como se chegou à situação de foragido. Convém, na dúvida, ou mesmo, quando não resta demonstrado pelo Estado que a fuga ocorreu para impedir a punição do crime, pois pode ter se dado só para impugnar o decreto prisional, – tido por injusto – a ordem deve ser concedida.

‘HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. EXTORSÃO. PRISÃO PREVENTIVA. FUNDAMENTAÇÃO. INIDONEIDADE. FUGA: AVALIAÇÃO, CASO A CASO.

1. Residência fora do distrito da culpa. Circunstância que não autoriza a prisão preventiva por conveniência da instrução criminal, especialmente porque o endereço do paciente é conhecido, o que viabiliza a expedição de carta precatória.
2. (…)
3. (…)
4. (…)
5. (…)
6. Fuga como justificativa da prisão cautelar para garantia da aplicação da lei penal. Necessidade de avaliá-la, caso a caso, para concluir-se se a intenção do paciente é frustrar o cumprimento da pena ou impugnar prisão que considera injusta.

7. Ausente, no caso, demonstração de que o paciente pretende subtrair-se à aplicação da lei penal.

Ordem concedida.’ (HC 91.971/RJ – STF, Rel. Min. Eros Grau)

Vale reforçar; quando o imputado foge do distrito da culpa, depois de ter tomado conhecimento do decreto de prisão preventiva e o faz para refutar a prisão porque a crê injusta é razoável que não se espere dele abrir mão de sua liberdade para, só depois, discutir a pertinência da medida constritiva. Não há que se falar em dever de colaborar com a justiça, sobretudo quando o próprio conceito de justiça constitui a base da controvérsia.

“o direito à fuga, sem violência, por aquele que, de forma procedente ou não, sinta-se alcançado por ato ilícito, à margem, portanto da ordem jurídica, surge como inerente ao homem, como um direito natural” (HC 84.934)

“agride a garantia da tutela jurisdicional exigir-se que, para poder questionar a validade da ordem de sua prisão, houvesse o cidadão de submeter-se previamente à efetivação dela” (HC 84.997-1/SP – STF, rel. Min. Cezar Peluso)

E, é bom não se perder de vista que a fuga apta a legitimar um decreto de prisão preventiva é aquela evidenciada por condutas reais, concretas e, sobretudo proativas do imputado (compra de bilhete de avião, encerramento de contas bancárias, dispensa de empregados, fechamento de empresa, venda de bens, preparação de bagagens, contratação de empresa de mudanças, etc) e não aquela fundada em meras presunções ou suposições do julgador. Cabendo ainda lembrar que a fuga sem violência a pessoa, por si mesma, não é crime. Não é uma conduta típica à luz do código penal, só o auxílio à fuga o é.

4 – A questão da (in)transcendência e da (in)ofensividade

 

O princípio da transcendência possui dupla acepção. A primeira à necessidade do individuo ter de se expressar através ações externas, quais sejam; aquelas que ultrapassem a esfera de seu pensamento e ganhe efetividade no mundo real e a segunda, diz respeito ao que lhe é contraposto, a necessidade do Estado só poder impor restrições, punições ou penas a quem realmente praticou o fato, não podendo alcançar terceiros. Nesta última acepção, conhecida como ‘princípio da intranscendencia das medidas restritivas de direito’, tem-se a proibição da pena ultrapassar a pessoa do culpado.

De outra monta, fala-se muito no princípio da ofensividade, de larga aplicação no Direito Penal e que é imprescindível para caracterizar a criminalização primária.

⁵ GOMES, Luiz Flávio. Fuga do agente e prisão preventiva. Jus navigandi, Teresina, ano 10, n°. 942, 31 jan. 2006. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7877. Acesso em 18 jun. 2010.
 
⁶ A promoção ou a facilitação a fuga de pessoa legalmente presa ou submetida a medida de segurança é crime (art. 351 do CP). Já, a fuga sem violência não constitui crime, pois típica é só a conduta consistente em: evadir-se ou tentar evadir-se o preso ou individuo submetido a medida de segurança detentiva, usando de violência contra pessoa (art. 352 do CP). No entanto, constitui falta grave (art. 50, II, da LEP), mesmo porque, o preso deve manter conduta oposta aos movimentos individuais ou coletivos de fuga ou de subversão à ordem ou à disciplina (art. 39, IV, da LEP). 
 

Pois bem, embora ambos sejam amplamente aplicados no Direito material, vejo-os irradiando efeitos também no âmbito processual. A lógica consiste em que, de acordo com o princípio (in) transcendência, o Juiz só pode decretar a prisão preventiva do imputado com base na: 1) conveniência da instrução criminal; na 2) garantia de aplicação da lei penal ou na 3) ordem pública (econômica) se a pessoa a ser presa houver dado causa a uma experiência sensível, algo observável e por isso mesmo, considerado ameaçador ao bem jurídico dessas instituições, sem o quê haverá mera conjectura ou adivinhação, destituída de valor jurídico.

É dizer, decisões do gênero: ‘decreto a prisão preventiva porque a personalidade do sujeito indica que ele pode ameaçar testemunhas’ (conveniência da instrução criminal) ou ‘pode evadir-se do distrito da culpa’ (garantia de aplicação da lei penal) ou ainda ‘pode retomar a prática criminosa’ (acautelar o meio social ou proteger a ordem pública) são fundamentações que afrontam o princípio da (in) transcendência, conquanto não possuam base empírica idônea. A liberdade do sujeito não pode ser suprimida com base na suposição do que se imagina ter o sujeito pensado ou desejado fazer se não chegou, ao menos, tentá-lo no mundo dos fatos.

Também não pode o Juiz aplicar uma medida restritiva de direito como a ‘privação da liberdade’ só porque ao individuo é atribuído um crime praticado no bojo de uma suposta organização criminosa, onde alguém – sem ser ele – fez algo que perturbou a conveniência da instrução criminal ou atentou contra a aplicação da lei penal, ou mesmo, causou insegurança à ordem pública.

Nesse ponto, a lição de Juarez Tavares:

“Embora óbvio, não parece demasia consignar que o que se prende cautelarmente são indivíduos e não organizações, sendo certo que o fato de ser ele integrante da mencionada organização não autoriza, por si só, a conclusão que sustenta o decreto prisional.” (HC 145382/RJ, Proc. nº. 2009/0163826-9 Parecer Subprocurador Geral da República – MPF)

Afinal, a organização criminosa é tão somente uma ficção jurídica insuscetível de misturar as personalidades dos sujeitos que a integram, os quais, por mais ajustados se encontrem sobre um mesmo propósito, sempre haverá a possibilidade de um deles ter agido por desígnio autônomo. Daí, não dever a prisão ser aferida de modo conjunto senão individual.

Por outro ângulo, tem-se o ‘princípio da ofensividade ou lesividade’ que, de acordo com Nilo Batista e Zaffaroni significa que: “nenhum direito pode legitimar uma intervenção punitiva quando não medeie, pelo menos, um conflito jurídico, entendido como a afetação de um bem jurídico total ou parcialmente alheio, individual ou coletivo (…)”. Daí porque, na extensão deste raciocínio, como emanação dos direitos e garantias constitucionais, entendo que tudo que acarrete punição/prisão, ainda que não se trate de ‘pena’ propriamente dita, exige um direito ferido ou exposto a perigo. Sem isso, haverá violação ao Estado de Direito Democrático com incorporação de regra moral ou ética em seu lugar.

Destaquei ‘na extensão do raciocínio de Nilo Batista e Zaffaroni’ porque esses autores se referiram ao princípio da lesividade no âmbito, estritamente penal (material), sendo minhas as ilações seguintes. E as fiz por um motivo simples, não tolero mais como possa o Estado-Juiz presumir do nada as reações psíquicas do preso que se encontra sob sua custódia, como se possuísse ele (o julgador) alguma propriedade extraordinária para afirmar a propensão do individuo em atentar contra um dos fundamentos do art. 312 do CPP.

Embora, tanto ao fundamento da conveniência da instrução criminal como ao da garantia de aplicação da lei penal se observe um conteúdo mais restrito que o da ordem pública que, de tão vasto, quase, tudo a incomoda. É necessário, sempre se procurar concretar a ofensa ao bem jurídico.

⁷ As personalidades podem ser semelhantes, mas nunca serão iguais. Pessoas de dada série, tipo, ordem ou arquétipo podem se parecer umas com as outras, mas nunca serão idênticas. A personalidade é aquele aspecto que conhecemos, e que nos capacita a identificar esse ser, em qualquer tempo futuro, a despeito da natureza e da extensão das mudanças na sua forma, na sua mente, ou no seu status espiritual. A reencarnação à ótica do livro de Urantia. (HTTP://www.elub.com.br/artigos/reencarnacao_2.htm).   
 
⁸ BATISTA, Nilo. ZAFFARONI, Eugenio Raul. Direito Penal – I. Editora Revan. 20
03, p. 226.
 
⁹Entende-se por ordem pública a situação e o estado de legalidade normal em que as autoridades exercem suas precípuas atribuições e os cidadãos as respeitam e acatam, sem constrangimento ou protesto. Ordem pública é a paz, a tranqüilidade no meio social. (TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado. Saraiva. 1992, p. 489. 
 
cação da lei penal não pareça difícil perceber que o bem jurídico protegido é a regular ‘administração da justiça’ (latu sensu). No que tange a ordem pública, a tarefa se complica mais um pouco, haja vista a difusão de seu conteúdo, pois nesta o bem jurídico corresponde à estabilidade da convivência social, algo difícil de ser singularizado.
 

De todo modo, em respeito ao princípio da ofensividade, deve a autoridade judiciária ao deferir uma prisão cautelar, não se furtar ao trabalho de apontar aonde no mundo dos fatos, existe a efetiva ofensa ou ameaça a tais instituições (conveniência da instrução criminal; garantia de aplicação da lei penal e/ou à ordem pública). Essa providência, tanto fortalece a decisão judicial, como fortalece o Direito de Defesa do imputado, pois traz segurança jurídica para os interesses contrapostos.

5 – Balanço final: Estado versus Direito de Defesa

Face ao exposto, enfatizo a hipocrisia do discurso da prisão preventiva, título desta dissertação, porque não vejo no Brasil congruência nos métodos de sua aplicação. Acredito haver até, certo, desequilíbrio no embate forense da matéria. Lembro que quando o Ministério Público defende a segregação cautelar de alguém e o Juiz a acolhe, dificilmente a Defesa do imputado consegue discutir sua (im)pertinência sem se deparar com intensa exposição de aspectos já subsumidos no tipo penal ou atrelados à própria conduta descrita na denúncia, embora, esses aspectos nem devessem guardar importância para a solução da controvérsia.

O fato de se dizer que a prisão preventiva se justifica para garantir a eficácia do provimento final condenatório (fumus boni iuris) só é correto quando ela (a prisão) for, de fato, o único meio de garanti-la.

Nada de errado há em se ver alguém condenado que passou toda a instrução processual solto e nem, o inverso, ver alguém absolvido que passou toda a instrução processual preso, mas o pior de tudo é ver Juízes ignorando que uma possível (ou provável) condenação não deve guardar por si só relação com a restrição da liberdade de ninguém, antes da sentença. O estado de normalidade processual deve sugerir a liberdade do réu e não o contrário. A prisão nunca pode ser considerada um fato natural, senão um mal necessário.

Entretanto, a impressão que se tem é a de que, uma vez processado, a liberdade ou não do imputado dependerá da habilidade do acusador descrever o fato criminoso. Quanto mais adjetivos, aspectos ou circunstâncias negativas forem desferidos contra o acusado, mais difícil será manter a sua liberdade e, se preso, ele já tiver sido, mais demorado será retomar a sua liberdade. É como se houvesse com o oferecimento da denúncia, também a proposição de uma condenação virtual à Defesa do réu, no sentido de obrigá-la a ter de, sempre que reivindicar a liberdade de seu cliente, rever no bojo das decisões denegatórias, os mesmos fragmentos da denúncia que enfatizam as circunstâncias mais graves desferidas contra o acusado. Uma covardia!

O sistema processual é tão falho quanto sedutor ao leigo e a imprensa sensacionalista, pois por mais técnico que seja o discurso de Defesa, ela nunca consegue se afastar muito da conduta incriminada. E, mesmo não precisando e até não devendo ser a ação do imputado lembrada com eloquência no trato de uma pretensa revogação de prisão cautelar, quando o é pelo órgão ministerial ou mesmo pelo Magistrado Relator de um HC, por exemplo, costuma sensibilizar negativamente a mídia e, por conseguinte, a opinião pública. Conseqüência: a reconquista da liberdade nessas circunstancias é, quase um sortilégio.

O processualista brasileiro, infelizmente não é nada fiel a alguns princípios constitucionais fundamentais como os da não-culpabilidade ou estado de inocência. A mão frouxa de alguns magistrados na garantia de aplicação desses princípios tem contribuído para a desarmonia do tema ‘prisão preventiva’.

Os Juízes de teto não podem se deixar enganar pelas fundamentações multi-utilitaristas dos Juízes de piso. Fundamentos que servem para qualquer decisão onde se pretenda mandar alguém para cadeia ou lá deixá-lo precisam ser combatidos com veemência. Toda decisão tem de estar voltada para o caso concreto e nela, não deve haver menção as inferências tiradas pelo titular da ação penal, sob pena de afrontar o estado de inocência, antecipando um juízo meritório, impertinente na discussão processual.

Do ponto de vista técnico, aliás, é muito mais apropriado se decretar uma prisão preventiva baseando-se somente em circunstâncias processuais, – de preferência verificadas após a prática delituosa – que fazê-lo com base na própria conduta imputada já objeto de persecução penal.

Não basta escrever uma centena de livros, ser um conferencista famoso e não se fazer nada do que em suas obras defende quando, diante de si, tem um caso concreto. O ditado popular: ‘faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço’, não pode ter abrigo aqui. A bola da vez está com a Magistratura, só ao Juiz cabe intervir para colocar as coisas nos eixos, sequer ao legislador se deve esperar uma solução, mesmo porque a solução legislativa, nestes casos, só costuma engessar a operatividade do sistema.

Acredito no responsável poder discricionário do Juiz para combater a hipocrisia do discurso da prisão cautelar no Brasil. Não é possível mais fechar os olhos para a banalização da prisão preventiva, vendo-a ser aplicada sob o título de exceção, mas com contumácia regular. É preciso que cada Juiz faça uma autocrítica de sua atividade jurisdicional. Confrontar as vezes que decidiu conforme a essência de suas convicções, com outras onde decidiu para não frustrar posicionamentos em voga no âmbito de certos poderes, pode ser um bom começo para mudar este panorama.

A prisão preventiva ou a sua antítese, a liberdade provisória, não pode continuar sendo tratada nas ‘salas de aula’, de forma muito diferente do que se depreende das ‘salas de audiência’. Chega de discursos de retórica, ou melhor, chega de hipocrisia mesmo!

Bibliografia

 

¹⁰ Poderes porque, de certo modo e em certa medida: toda introdução de ordem acarreta algum tipo de poder e dominação. PUGLIESI, Márcio. Primeiras reflexões sobre método e um novo conceito de sujeito. Revista Brasileira de Filosofia. Editora Revista dos Tribunais, volume 232. 2009, p. 288.
 

BATISTA, Nilo. ZAFFARONI, Eugenio Raul. Direito Penal – I. Editora Revan. 2003.

BURCKHARDT, Titus. Le Paysage dans I’Art extreme-oriental in Príncipes ET Méthodes de I’ Art. Sacré, p. 187, Dervy-Livres, Paris, 1976 (Trad. Luiz Pontual).

FERRAJOLI, Luigi, O direito como sistema de garantias, apud SILVA FRANCO, Alberto, O juiz e o modelo garantista, publicado no do Boletim IBCCRIM nº 56 – Julho /1997.

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KARAM, Maria Lúcia. Liberdade, Presunção de Inocência e Prisões Provisórias. Lumen Juris, vol. 6. 2009.

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TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado. Saraiva. 1992.

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